Cairo Mariano e Jeon Jungkook compartilham uma história que precede o tempo.
Nascidos no mesmo dia, cresceram juntos na pacata S?o Dimas, sob o abandono precoce da inf?ncia e o caos da puberdade. Agora, às vésperas dos trinta anos, é S?o Paulo que...
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Para este homem amargo:
Depois de um amor que se desfez em desencanto, retomo a narrativa com a voz ainda trêmula — após a morte cruel e o vilipêndio de um lírio mutilado, cujas pétalas foram incineradas pelas mesmas mãos que o semearam.
Esta é a minha versão dos fatos.
4.383 dias antes
São Paulo, 2013.
Ele era displicentemente bonito.
Atraente de um jeito quase sufocante, hipnótico, deliberadamente brutal ㅡ como se por uma negligência cruel do acaso. Sem esforço algum. Não podia se adequar aos moldes clássicos de uma beleza comum como esses homens que volta e meia surgiam na televisão com seus rostos milimetricamente perfeitos, estava distante demais da ideia de beldade, mas era, de algum modo, magnético.
Dos cabelos negros, densos e quase oleosos, como terra molhada de cemitério, que escorria até a altura do colarinho, até a imponência da altura, impossível de ignorar. O sorriso, raro, encapsulava a boca carnuda entre parênteses profundos, mas desaparecia tão logo ele assumia a ausência de bons modos, oferecendo um raro e efusivo "bom dia" à turma desatenta. Como naquele dia, em que ele enveredou pela sala carregando uma pasta atolada de papéis soltos.
Movia-se uma solenidade quase cerimonial, típica dos escudeiros medievais ㅡ os ombros largos, a postura viril e um certo desprezo orgulhoso por quem o cercava, e com sua calma litúrgica, fechando as janelas da sala de aula e nos isolando do barulho lá fora: a cidade, o caos do trânsito e a construção que se erguia do chão, levantando a poeira do concreto cinzento.
Mãos e braços desenhavam gestos coreografados. Arregaçava as mangas da camisa azul de botões, antecipando algum movimento braçal familiar. Havia algo em sua postura de quem se preparava para algo sujo, difícil; como um crime já executado outras mil vezes.
Lembrava os Cristos pendurados ao redor da parede úmida da sala de estar da vovó Doninha; com seu altar improvisado com paninhos de chita na mesa de centro recostada na parede, onde a santa de pés desbotados e gesso lascado repousava. Acima dela, todas as suas versões de Jesus. Ele tinha a proporção exata daquele nariz anguloso, longo e teatral ㅡ sobretudo do Cristo europeu no quadro lenticular, que me seguia com os olhos conforme eu andava pela casa e pressentia seus milagres. A distância beatífica também era a mesma. Como assistir à aparição de uma divindade sob uma superfície de vidro. Penso que foi assim que vi nele a minha salvação.
É a primeira lembrança que tenho, a única incapaz de me ferir.
Apesar disso, não parecia tão ameaçador a um primeiro olhar como havia sido descrito pelas alunas do quarto período, mas definitivamente não prometia nenhuma afinidade imediata.