⚠️ Avisos Importantes ⚠️
Essa é uma one shot, com duas partes.
Ela foi inspirada na música do Joshua Bassett.
Lifeline, que eu recomendo ouvir em looping enquanto faz a leitura, para quem gosta de ler ouvindo música, vai deixar a experiência mais imersiva.
É uma história triste, caso não goste, não leia, por favor.
Não irei pagar terapia pra ninguém.
Cada um tem responsabilidade com suas próprias lágrimas derramadas.
Bom, boa leitura.
[12 horas restantes]
O doutor disse que eu tenho apenas 12 horas restantes.
Só isso.
Não respondo. Não consigo.
Meus olhos permanecem fixos em um ponto qualquer da mesa. Talvez nos papéis que ele mexeu antes de me olhar nos olhos. Talvez no relógio digital que não para de contar os minutos que ainda me restam. Talvez em nada.
Não tem lágrimas.
Não tem grito.
Não tem reação.
Apenas permaneço sentada, com as palavras dele ecoando na minha cabeça como um sino fúnebre. A sala está fria, o ar-condicionado sussurra no fundo, mas meu corpo inteiro parece ter congelado por dentro. É como se meu cérebro tivesse sido arrancado do corpo, como se algo dentro de mim tivesse desligado todas as funções vitais de emoção. Tudo fica em silêncio. Até meus pensamentos. Um silêncio tão denso que parece me engolir por dentro.
A voz do médico ainda tenta alcançar meus ouvidos. Ele fala palavras que não importam mais: protocolos, conforto, tempo. Só que o tempo... o tempo já me foi roubado.
Levanto.
Não sei como.
Não me lembro de dizer nada. Nem de abrir a porta. Apenas levanto, como se estivesse sonâmbula.
O som dos meus passos no chão de vinil branco é abafado pelo ruído distante de vozes, telefones tocando, máquinas apitando. Mas tudo parece irreal. Como se eu estivesse presa em um sonho — ou em um pesadelo.
Saio do consultório e o mundo... continua. Carros lá fora, gente caminhando apressadamente, mensagens chegando em celulares de estranhos. Tudo funcionando. Como se nada tivesse acontecido.
Mas dentro de mim, tudo já acabou.
A luz branca dos refletores sopra sobre mim como se fossem holofotes de um tribunal. E de repente, tudo ao redor desacelera. Enfermeiros empurrando macas, pacientes conversando, médicos correndo... tudo se move em câmera lenta.
Menos eu.
Eu estou parada.
Minhas pernas finalmente decidem se mover, e eu ando sem saber para onde.
Me encosto na parede do corredor, perto de uma janela. O vidro reflete meu rosto, mas eu mal me reconheço. A palidez, o olhar perdido, o corpo rígido... sou eu. E ao mesmo tempo, não sou.
Respiro fundo, tentando puxar o ar que me falta. Tento entender o que estou sentindo, mas é impossível. É como se uma parte de mim tivesse se partido em mil pedaços e agora estivesse flutuando em câmera lenta ao meu redor, impossível de colar.
Doze horas.
É tudo o que me resta.
Doze horas para abraçar minha filha uma última vez.
Doze horas para olhar nos olhos da mulher que é minha Vida.
Minha vida... e minha Vida. As duas coisas se misturam agora. Não sei se estou chorando por mim, por ela ou pelas duas. O que eu sei é que, em breve, eu não estarei mais aqui. E como eu posso suportar a ideia de deixá-las? Como se continua respirando depois de receber uma sentença dessas?
Pego o celular com mãos trêmulas. Meus dedos hesitam por um instante, mas depois tocam o nome que sempre fica fixo no topo da lista de favoritos.
Becky. Minha Vida.
Meu sol de todos os dias, mesmo nos nublados. Meu colo nas madrugadas, meu lar quando tudo doía. Como... como olhar pra ela nos olhos e dizer que o tempo acabou?
Como deixar pra trás a mulher com quem eu prometi o "pra sempre"?
Como não viver o futuro que sonhamos? Os cafés da manhã de domingo. As viagens pra praia...
O mundo inteiro está desmoronando dentro de mim.
Sinto a garganta fechar. Minhas mãos começam a tremer. O ar parece pesado demais.
A ligação começa e toca só uma vez.
— Alô?
A voz dela.
A única coisa no mundo que ainda me acalma. A única voz que ainda me ancora à realidade.
Engulo em seco.
— Amor... — minha voz sai fraca, quebrada, como se eu estivesse me desfazendo em cada sílaba. — Aconteceu uma coisa... muito séria.
Ela não fala por alguns segundos. Mas posso sentir o alarme silencioso do outro lado. Ela me conhece. Ela sabe que essa voz não é a de quem está com saudade. É a voz de quem está caindo.
— Onde você tá? — ela pergunta, já decidida.
— Hospital.
— Qual? Me diz.
Eu digo. E ela escuta. Anota.
— Eu tô indo. Agora.
— Becca...
— Eu tô indo, Freen. Espera por mim.
A ligação cai, e junto dela, minha força.
Becky está vindo.
E eu não sei se me sinto aliviada... ou mais desesperada ainda. Porque, pela primeira vez, eu não vou conseguir protegê-la. Não dessa dor.
Fico ali, imóvel, com o celular ainda na mão. O corredor gelado à minha volta, a luz branca quase cruel sobre minha cabeça. E doze horas restantes.
Doze horas e um coração que não sabe se vai aguentar até vê-la mais uma vez.
Não tenho como contar isso à nossa filha ainda.
Ela só tem cinco anos. É tão pequena... tão cheia de luz.
Tão cheia de mim.
Penso no jeitinho como ela corre até mim todas as manhãs, o cabelo bagunçado, a voz doce me chamando de mãe... Minha Moonie. Nossa pequena lua, tão perfeita. Como vou explicar a ela que o sol dela vai apagar?
E como eu conto à Becky... que as promessas de "para sempre" têm prazo de validade?
Talvez eu não conte ainda. Talvez eu só diga que foi algo sério. Que é urgente. Que o tempo está se esgotando.
Ela entenderá. Becky sempre entende.
Mas mesmo entendendo... será que algum dia ela vai me perdoar?
Eu olho mais uma vez meu reflexo na janela.
Por fora, continuo parecendo calma.
Por dentro, já estou morrendo.
E o relógio corre.
...
[11 horas restantes]
— Senhora Sarocha?
A voz da enfermeira me puxa de volta para o corredor, onde ainda estou parada feito uma estátua. Ela se aproxima devagar, com um tablet na mão e um olhar gentil.
— O doutor pediu para eu levá-la até um leito de observação. Só até os próximos exames.
Assinto sem dizer uma palavra. Apenas sigo.
Meus passos são automáticos. Ela fala algo sobre o andar, sobre o horário da visita médica, mas eu não registro nada. Meus olhos estão fixos em algum ponto além do corredor, talvez no passado. Ou num futuro que eu já não tenho.
O caminho parece longo. Ou talvez seja só o tempo que está se esticando cruelmente, como se zombasse de mim.
E é nesse silêncio que minha cabeça começa a rodar de novo.
Becky já está vindo.
Ela deve ter embarcado no primeiro voo. Uma hora até aqui. Sessenta minutos para ela atravessar o céu com a mesma pressa que eu gostaria de usar pra parar o tempo.
Imagino ela sentada na poltrona do avião, apertando as mãos uma na outra, olhando pela janela como se já sentisse que algo dentro dela estava se partindo. Porque ela sente. Ela sempre sente.
E eu... eu deveria ter dito algo.
Deveria ter avisado que talvez não fosse o momento de trazer nossa filha.
Mas não consegui.
Porque no fundo, eu sabia. Eu sabia que ela viria com Moonie. Porque é isso o que fazemos — ficamos juntas. Mesmo na tempestade. Mesmo quando tudo ameaça desabar.
Mas será que eu deveria ter protegido nossa pequena disso? Será que ainda dá tempo?
Ela só tem cinco anos.
Como se explica a morte para uma criança que ainda acredita em fadas e na força mágica do abraço de mãe?
Minha cabeça está cheia. Confusa.
Talvez eu devesse ter dito para Becky vir sozinha.
Talvez eu devesse ter dito tudo.
Ou nada.
A verdade é que... eu não sei.
Não sei de mais nada.
A notícia veio como um golpe. Rápido, preciso, e destruidor. Não teve tempo de me preparar. Não teve tempo pra pensar.
Agora estou aqui, andando em direção a um leito como quem caminha até a beira de um abismo.
A enfermeira para diante de uma porta e me convida a entrar. O quarto é simples, com paredes brancas e cortinas azul-claras. Parece limpo. Calmo.
Mas tudo aqui dentro grita.
Eu me sento na cama devagar, como se meu corpo não tivesse mais certeza de como se mover.
E fico ali.
Esperando.
Pensando.
Tentando.
Tentando encontrar um jeito de caber nesses últimos instantes de vida. Tentando entender como se faz pra começar a morrer.
As enfermeiras foram gentis. Falaram baixo, perguntaram se eu precisava de algo, ajeitaram os travesseiros e checaram os sinais com uma eficiência que me deu ainda mais medo.
Agora estou deitada. Os fios saem do meu peito, do meu braço, da ponta do dedo. O monitor ao lado apita num ritmo constante, como se estivesse anunciando cada segundo que passa.
Cada segundo a menos.
...
[10 horas e 30 minutos]
O teto é branco demais. Frio demais. Eu me esforço pra não fechar os olhos, porque sei que, a qualquer momento, posso começar a desaparecer em mim mesma.
Então olho para o lado, para o reflexo fosco da tela do monitor, e penso nela.
Becky.
Minha mulher.
Meu amor.
Minha calma nas noites mais turbulentas, minha força quando tudo falhava. Ela foi tudo. É tudo. Sempre será.
Nós construímos um mundo só nosso. Tijolo por tijolo. Sorriso por sorriso. Foram anos de promessas, viagens inesperadas, bilhetes no espelho, risadas no sofá, jantares esquecidos porque o beijo era mais urgente.
E, entre tudo isso... veio ela.
Moonie.
A mais perfeita mistura de nós duas.
Aquela criança nasceu e, de alguma forma, deu sentido ao que já era inteiro. Com os olhos da Becky e a teimosia minha. Com uma risada que parece luz.
Como a vida pode ser tão cruel ao ponto de querer me arrancar disso?
Como uma doença tão silenciosa consegue tirar alguém do lugar onde mais queria estar?
Nada gritou. Nada doeu. Nada avisou.
Só veio. E tomou.
E agora eu tô aqui. Deitada, monitorada, cercada por aparelhos que tentam me manter inteira até que ela chegue. Até que as duas cheguem.
Meu coração ainda bate. Mas cada batida é um lembrete de que ele pode parar a qualquer momento.
E mesmo assim... estou em paz.
Porque ela está vindo.
Becky está vindo.
E se esse for mesmo o fim, então que seja com ela ao meu lado. Porque pra mim, o meu para sempre... sempre foi ela.
Oh, eu sei...
Não vai ser fácil dizer adeus. Não vai ser fácil olhar pra elas e fingir força quando tudo dentro de mim quer desabar.
Mas se tem uma coisa que eu aprendi amando Becky... é que mesmo na dor, o amor ainda encontra um jeito de viver.
Mesmo na morte... o amor continua.
...
[10 horas restantes]
Ela chegou.
O som da porta se abrindo é quase inaudível, mas o coração reconhece.
Meu coração.
Mesmo falhando, mesmo cansado, mesmo sabendo que está chegando ao fim... ele ainda bate por ela.
Becky entra no quarto como uma onda quebrando na areia: rápida, intensa, carregada de emoção.
Ela segura a filha nos braços, e pela primeira vez desde que recebi a notícia, sinto algo se aquecer dentro de mim. Moonie está aqui. Minha luz. Nossa luz.
Nossos olhos se encontram, e por um instante o mundo perde o foco. O hospital, os fios, a dor — tudo desaparece. Só resta o amor.
Ela caminha até mim sem hesitar. Mas eu vejo. Eu vejo a surpresa nos olhos dela. O baque. O medo.
O estado em que me encontro... ela não estava preparada. Nem eu estaria, se fosse o contrário.
Ela me encara como se algo dentro dela tivesse acabado de ruir.
— Freen... — sua voz falha. — O que aconteceu com você?
Eu tento sorrir, mas minha boca só treme.
— Eu sei que não estou bem — respondo, com esforço. — Mas você chegou. E isso é tudo que importa agora.
Ela abaixa o olhar para a pequena em seus braços.
— Ela dormiu no avião. Acordou quando a gente desceu, chorou. Eu disse que era surpresa, que íamos ver a mamãe...
Becky se ajoelha ao lado da cama. Deita a menina cuidadosamente ao meu lado, com o maior cuidado do mundo, como se temesse que o tempo nos arrancasse uma da outra a qualquer segundo.
A filha respira fundo, os cílios trêmulos. Ela reconhece o cheiro. A presença.
E quando abre os olhos...
— Mamãe?
Eu não aguento.
As lágrimas que resistiram até agora finalmente vencem. Escorrem livres pelo meu rosto enquanto a puxo para perto.
— Oi, meu amor... — minha voz é um sussurro de dor e ternura. — A mamãe tava com tanta saudade...
Ela se aconchega no meu peito. Os bracinhos apertando meu corpo com força.
Becky nos envolve com os braços. As três ali. A família inteira. Meu mundo inteiro. Em uma cama de hospital, sob a luz fria, com o tempo nos escapando por entre os dedos.
E tudo o que consigo pensar é: por que justo agora?
Becky me olha com os olhos marejados. E neles há um pedido de desculpas. Pelas palavras duras de antes da viagem. Pela distância. Pela discussão tola sobre tempo, sobre cuidado, sobre o que fazer com a rotina. A verdade é que... a gente brigou por besteira. E talvez eu devesse ter contado que não estava bem. Que vinha me sentindo cansada, que meu corpo pedia ajuda.
Mas eu não quis preocupar. Ou talvez... eu não quis acreditar.
Agora ela sabe. Agora ela vê.
Eu encosto minha testa em seu ombro, respiro seu perfume como se fosse a última vez. E digo, baixinho, contra seus cabelos:
— Não importa o que estávamos dizendo... — murmuro — apenas estou feliz que você conseguiu chegar até mim.
Becky fecha os olhos, e seu corpo se desfaz um pouco no meu. Depois, ela se afasta só o suficiente pra olhar nos meus olhos. E sorri.
Aquele sorriso.
Becky sempre foi tão linda. Mas era mais que aparência. Era essência. Era o jeito que ela sorria mesmo quando o mundo desabava. O jeito que fazia tudo parecer mais leve, mesmo quando doía.
Como poderia o simples ato de acordar ao lado dela ser algo tão comparável à mais bela arte já feita no mundo?
Não havia como explicar.
Era algo além da compreensão.
Cada segundo com minha Becky sempre foi mais importante que tudo nesse mundo.
O abrir lento dos olhos dela, as pupilas procurando o foco e então... o sorriso.
— Eu não devia ter ido — sussurra ela. — Eu senti que você não estava bem, Freen... mas a gente brigou, você disse que tava tudo bem...
— Não se culpa por isso — falo, e minha mão encontra a dela. — Eu também não sabia o que estava acontecendo. Só achei que era cansaço. Que ia passar.
Ela fecha os olhos e encosta a testa na minha.
— Você é a minha vida inteira, Freen. Eu não suporto te ver assim.
— E você é a minha. Você e nossa Moonie.
Eu respiro fundo. O ar entra com dificuldade, como se cada molécula estivesse sendo contada. Mas nesse momento... estou cercada pelas duas razões pelas quais lutei todos os dias.
A doença foi silenciosa.
Mas o amor que nos une... esse sempre foi barulhento demais pra ser ignorado.
E é por ele que eu quero aguentar.
Mesmo que seja só por mais algumas horas.
— Ver a minha Vida à minha frente é algo que eu preciso pra sempre.
— E você sempre terá sua Vida com você, meu amor — ela responde, acariciando meu rosto com delicadeza. — Pois não pretendo me afastar.
Seus lábios tocam os meus. Um toque leve, sagrado. Como se disséssemos tudo sem dizer nada.
Mas quando ela se afasta de novo, algo em seu olhar muda.
Ela me observa melhor, agora vendo além da emoção do reencontro.
Os fios ligados ao meu corpo. Os monitores atrás da cama. A palidez do meu rosto. O som ritmado que apita atrás de mim. O silêncio quase absoluto em volta, como se o hospital se curvasse à nossa dor.
A realidade cai sobre ela como um peso.
E nos olhos dela... o pânico começa a surgir.
— Freen... — ela sussurra, e sua voz quebra.
Ela tenta disfarçar, tenta ser forte, principalmente com nossa filha ali, com o rostinho colado ao meu peito, já quase adormecida de novo, como se aquele abraço fosse seu lugar mais seguro no mundo.
Mas Becky me conhece. Conhece cada centímetro de mim. Cada ausência de cor no meu rosto. Cada tremor na minha respiração.
Ela passa os olhos pelos fios que saem do meu braço, pelo monitor que apita ritmado atrás de mim. Os números. A linha que dança com os batimentos. A cânula de oxigênio presa ao meu nariz.
— O que está acontecendo? — ela pergunta com a voz baixa, como se tivesse medo da resposta. Ou talvez não quisesse acordar nossa filha. Ou talvez... não quisesse despertar completamente o terror dentro dela.
Eu respiro fundo. Preciso escolher as palavras. Preciso pensar no que dizer quando eu mesma ainda não assimilei tudo.
— É uma doença silenciosa, Becky... — respondo, com a voz embargada. — Ela ficou escondida. Até ser tarde demais.
Vejo seus olhos se arregalarem. A pele perder a cor. Um passo atrás, como se a dor a empurrasse fisicamente.
— Mas como? Por que você não me contou nada?
— Porque eu não sabia. Não de verdade. Só... sentia que algo não tava certo, mas eu achava que era o cansaço, a rotina, sabe? — olho pra Moonie, agora em sono leve, com os cílios ainda molhados das lágrimas de antes. — Eu não queria preocupar você. Ainda mais com a viagem, com ela...
Becky cobre a boca com a mão, e o choro escapa. Silencioso, desesperado.
— Isso não... não pode estar acontecendo — ela diz, apertando os olhos com força, como se tentasse acordar de um pesadelo.
Eu estendo a mão, tocando a dela. É o que consigo fazer.
— Eu te juro, amor... se eu soubesse, se eu tivesse entendido antes... eu teria feito tudo diferente.
Ela segura minha mão com força. Como se quisesse impedir o tempo de levar o que restava de nós.
— Por que você não me disse logo quando começou a se sentir estranha?
— Porque... eu achei que ia passar. Que era só mais uma fase difícil. A gente tava cansada. A discussão antes da viagem, lembra? Eu não queria que isso parecesse mais um motivo pra gente se afastar. Eu só... tentei ser forte. Como sempre.
Becky balança a cabeça devagar. Ela está tentando absorver. Tentar encontrar sentido. Mas a única coisa que existe agora é a urgência do tempo.
O pouco tempo.
Ela se senta na beira da cama e me envolve de novo, agora sem palavras. O corpo dela colado ao meu. A cabeça dela junto à minha. Nossos corações batendo juntos, mesmo que o meu esteja mais fraco.
E nossa filha ali no meio. A respiração calma de quem ainda não entende o que está prestes a acontecer.
— Eu não vou deixar você ir sozinha — Becky murmura contra meu pescoço, a voz firme apesar do choro.
— Você não precisa... — minha voz falha, mas eu continuo — porque você já é tudo que eu sempre quis levar comigo. Onde quer que eu vá.
Ela beija minha testa, me aperta ainda mais. E por um instante, mesmo com tudo ao redor desmoronando, eu me sinto em casa.
Porque Becky está aqui.
E nossa filha também.
E por mais que o fim esteja se aproximando, meu coração, mesmo cansado, ainda sabe onde é o meu lugar.
...
[9 horas restantes]
A noite começa a cair pelas frestas da janela do hospital.
Luzes da cidade piscam ao longe como se quisessem me lembrar que o mundo ainda gira, mesmo que o meu esteja prestes a parar.
Becky ainda está aqui.
Ela não saiu do meu lado desde o momento em que entrou. Está comigo, com a testa colada à minha, com a nossa filha aninhada entre nós duas. Como se assim pudesse me manter aqui. Como se o calor dos corpos dela e da nossa pequena pudesse impedir o frio da morte de chegar.
Mas ela também tenta ser forte. Por mim. Por Moonie. E por ela mesma, talvez.
Ela se levanta devagar, ajeita a coberta sobre mim e beija minha testa. Depois, caminha até a porta e conversa em sussurros com uma das enfermeiras. Pede para falar com o médico.
Não sei se quer respostas. Ou um milagre.
Alguns minutos depois, volta para o quarto, os olhos vermelhos, mas tentando disfarçar. Ela se senta ao meu lado, me pega pela mão e sorri. Aquele sorriso que sempre me acalmou. Só que dessa vez... há desespero por trás dele.
— O médico disse... — sua voz falha, ela fecha os olhos com força antes de continuar — que seus órgãos estão começando a falhar. Devagar. Mas... é um processo inevitável.
Ela engole em seco.
— Eles vão manter você confortável. Com os remédios certos. Para que... seja o menos doloroso possível.
Meus olhos marejam. Eu sabia. Mas ouvir da voz dela... rasga.
Ela deita ao meu lado e envolve meus ombros com um braço, puxando a filha ainda adormecida para mais perto. Ficamos assim, as três, como um casulo quente contra o frio que vem de dentro de mim.
E então ela segura minha mão e sussurra, tão baixinho que parece um pedido:
— Não me deixa.
Meu coração se parte.
— Você sabe que eu daria tudo pra ficar.
Ela chora. E eu também.
Porque essa é a dor que mais dói: saber que ela continuará, mas sem mim. Saber que seus dias não terão mais meu toque, meu riso, minha presença. Saber que seus sonhos vão seguir, e eu não estarei mais lá para apoia-los com ela.
Mas então eu lembro...
— Becky... lembra quando sonhávamos em ter filhos?
Ela assente, entre lágrimas.
— Eu queria tanto... tanto mesmo.
— Eu também.
Ela tenta sorrir. Mas sei que essa lembrança ainda é uma ferida.
— A gente tentou — digo. — Tentamos tanto...
— E foi tão duro... — ela completa, acariciando meu braço. — Você passou por tanto... tantas frustrações, tantas perdas... e mesmo assim nunca deixou de sorrir pra mim.
— Eu sorria porque você nunca soltou minha mão — respondo, sentindo as lágrimas correrem. — Até o dia em que você disse... "e se eu tentar por nós duas?".
Ela fecha os olhos, absorvendo a lembrança como se fosse um abraço antigo.
— Eu nunca quis nada mais do que dar à você... nossa família.
— E você me deu — digo, olhando pra Moonie, com os cabelos bagunçados no travesseiro, respirando devagarzinho. — A gente recebeu um milagre.
— Moonie... — Becky sussurra, passando os dedos nos cachos finos da nossa filha. — Tão pequena... apenas um bebê. Mas era como uma lua cheia em noite estrelada. Linda e brilhante. Simplesmente perfeita.
E era.
A gente perdeu tanto... sofreu tanto... e ainda assim, encontramos nela nosso novo sol.
Nosso equilíbrio.
Nosso lar.
Sim... agora eu tinha meu Sol e minha Lua. Sempre comigo.
E por mais que o tempo esteja contra nós... eu sei.
Eu fui feliz.
Com elas.
Com tudo que a gente construiu.
Com cada memória. Cada manhã. Cada noite com braços entrelaçados e sonhos divididos.
Ainda restam horas.
Mas neste momento... nós estamos juntas.
E isso é tudo.
...
[8 horas restantes]
Um leve resmungo corta o silêncio do quarto.
— Mamãe...
Moonie se mexe devagar, os bracinhos gordinhos saindo debaixo do cobertor, enquanto ela esfrega os olhos com aquela preguiça adorável de quem acabou de acordar do soninho mais tranquilo do mundo.
Becky se inclina pra ela, sussurrando:
— Oi, meu amor. Dormiu bem?
— Tô com fominha...
Freen sorri, os olhos marejados. Aquilo era tão simples. Tão cotidiano. Mas agora... era tudo.
Ver sua filha acordar, ouvir aquela voz doce e pequenina pedindo comida como se o mundo ainda fosse o mesmo.
— Você quer ir com a mamãe comer alguma coisa? — Becky pergunta, limpando um fiozinho de baba do queixinho da menina.
— Quero... suquinho também.
Becky sorri, mesmo com a tristeza ainda pesando em seu olhar. Ela olha pra Freen, como se perguntasse silenciosamente se tudo bem deixá-la por alguns minutos.
Freen assente com um olhar terno. Ela sabia que precisava de um instante sozinha.
Becky beija sua testa, depois a boca com carinho e sussurra:
— Já volto, meu amor. Só uns minutos.
Freen vê as duas saírem. A filha segurando a mão da mãe, os passinhos lentos de quem ainda está acordando. A imagem das duas indo embora é como uma fotografia viva, perfeita, do que ela mais amava no mundo.
E então, sozinha, ela se ajeita com esforço na cama.
Pede papel e caneta à enfermeira.
Seus dedos tremem, mas ela escreve. Lenta, cuidadosamente.
Uma carta para Becky.
Uma carta para Moonie.
Na carta para Becky:
Freen escreve sobre os primeiros olhares, os primeiros toques, a primeira vez que soube que a amava. Fala do quanto Becky a tornou uma mulher melhor, mais forte, mais viva.
Pede desculpas pelas brigas bobas, pelos dias em que não soube demonstrar o amor como sentia.
E agradece... por cada ano, cada escolha, cada renúncia.
Freen termina dizendo:
"Mesmo quando meu corpo se for, quero que saiba que continuo aqui. Em cada canto da casa. Em cada história que você contar pra nossa filha. No gosto do milk tea que você tanto gosta. Eu vou ser o vento que toca sua pele quando você estiver sentindo saudade.
Eu sou sua.
Sempre fui.
Te espero, em algum lugar bonito, onde o tempo não machuca mais."
Na carta para Moonie:
Ela desenha um sol e uma lua.
Conta pra filha que ela foi o sonho mais bonito que a mommy Freen já teve. Que, mesmo pequena, já trouxe luz pra todos os cantos da vida delas.
"Minha pequena Moonie, você foi o presente mais lindo que a vida me deu.
Sempre que olhar pro céu e ver a lua, lembra de mim.
Porque eu estarei lá, olhando pra você e torcendo por cada passinho seu.
Nunca duvide que foi amada.
Tão, tão amada.
Da sua mamãe, com amor eterno."
Ela dobra as cartas com cuidado, e as guarda dentro da pequena bolsa em sua mesinha, deixando uma flor de papel presa entre elas.
Não demora e a porta se abre novamente.
Becky entra com Moonie no colo, segurando um copinho de suco e com farelos de biscoito na blusa. As duas parecem mais leves — mesmo que o ar ainda pese como uma nuvem prestes a chover.
Moonie sobe na cama com jeitinho, com ajuda de Becky, e se deita ao lado da mamãe Freen, encostando a cabecinha no ombro dela.
— Tá melhor, mamãe? — ela pergunta, com aqueles olhinhos inocentes que ainda não entendem o que está acontecendo.
— Agora tô... muito melhor — Freen responde, acariciando os cabelos da filha com carinho.
Becky, exausta, se senta na poltrona ao lado.
A expressão no rosto dela mistura amor, cansaço e um peso que parece maior que o mundo. Ela observa as duas de longe, tentando guardar aquela imagem como um tesouro.
Aos poucos, ela se entrega ao sono.
A cabeça pende, o corpo cede.
Mas mesmo assim...
Ela dorme na poltrona ao lado, segurando minha mão, mesmo no sono.
Eu fico apenas olhando.
Porque não sei quantas vezes mais poderei ver esse rosto.
O rosto da mulher da minha vida.
A minha linha de vida.
E mesmo que o mundo acabe quando o sol nascer...
Com ela aqui, essa noite...
É o suficiente.
...
[7 horas restantes]
O quarto está quase em penumbra. A única luz vem do corredor, filtrando-se suavemente pela fresta da porta entreaberta. O monitor cardíaco apita baixo, compassado. Um lembrete sutil de que o tempo ainda corre.
Moonie se remexe ao meu lado, e seus olhinhos se abrem devagar. Ela levanta a cabeça e me encara com aquele olhar curioso que só uma criança consegue ter.
— Mamãe... você vai ficar dodói muito tempo?
Minha garganta aperta, mas sorrio.
— Não muito, meu amor. Logo a mamãe vai descansar.
Ela faz um biquinho.
— Mas... se você dormir, vai acordar pra brincar comigo depois?
Seguro a mãozinha dela.
— Eu sempre vou brincar com você... nos seus sonhos, nos seus desenhos... cada vez que você olhar pro céu, eu vou estar lá. Te mandando beijos escondidos com as nuvens.
Ela dá uma risadinha doce. Tão leve, tão viva.
— Que nem mágica?
— Exatamente como mágica.
Ela apoia o queixinho no meu ombro e pergunta baixinho:
— Mami Becs vai sonhar com você também?
— Vai sim, minha lua. A mamãe Freen é boa de entrar nos sonhos, sabia?
Ela sorri satisfeita. Seus olhinhos brilham, mesmo sem entender o que realmente está acontecendo.
E então, devagarzinho, sem soltar minha mão, ela volta a fechar os olhos.
...
Becky acorda com um leve sobressalto. Seus olhos âmbar, tão belos e intensos, se voltam pra mim imediatamente. Ela percebe que ainda estou acordada — como se eu fosse conseguir dormir, sabendo que o tempo está passando tão depressa.
— Você não dormiu? — ela pergunta, a voz rouca de quem ficou chorando até adormecer.
— Não queria perder nenhum segundo com vocês.
Ela se aproxima, se senta na beirada da cama, e segura meu rosto com as duas mãos.
— Você vai me fazer chorar de novo, Freen...
Eu sorrio, mesmo com os olhos úmidos. Eu sorrio por ela. Sempre por ela.
— Não chore ainda — peço. — Ainda não é hora de dizer adeus.
Becky se deita comigo, de ladinho, o rosto colado ao meu. Como se não existisse mais espaço entre nossos corpos.
— Você sabe, né? — pergunto.
— Sei o quê?
— Que você é meu tudo. Minha vida. Meu amor.
Seus olhos se enchem d'água. Eu a conheço demais. Cada lágrima que cai nela parece pesar dentro de mim.
— Eu te amo, Becky.
Ela fecha os olhos, e o sorriso brota mesmo no meio da tristeza.
Ela sabia. Sempre soube.
Mas sempre foi bom dizer.
Becky me abraça mais forte. E eu sussurro:
— Amor... deixei duas cartas. Uma pra você... e uma pra nossa Moonie.
Ela se afasta só o suficiente pra me encarar. O choro vem como uma onda silenciosa. Incontrolável.
Ela aperta os olhos com força, tentando conter as lágrimas.
Mas falha.
Eu limpo seu rosto com os dedos.
— Só abram depois... quando eu não estiver mais aqui, tá?
Becky não responde. Apenas assente com a cabeça, enquanto as lágrimas caem uma a uma, desmoronando.
E então, a voz fininha da nossa filha, deitada entre nós, quebra o silêncio:
— Mami Becs... por que você tá chorando?
Becky engole o choro, mas não consegue evitar que a voz saia falha:
— É que... eu amo muito vocês duas, meu amor.
— E pra onde a mamãe Freen vai partir?
Becky olha pra mim. A pergunta nos atinge em cheio.
Respiro fundo e acaricio o cabelinho da nossa pequena.
— A mamãe Freen vai fazer uma viagem muito importante... pra um lugar onde não dá pra ir de avião, nem de carro.
Moonie franze a testa, intrigada.
— Mas eu vou poder ver você?
— Sempre que olhar pra lua, vai ser como se estivesse olhando pra mim. Eu vou estar lá, olhando de volta.
Ela fecha os olhos, encostando de novo em mim.
— Então eu vou olhar todo dia, tá?
Becky a beija no topo da cabeça. Eu também.
E assim, entre suspiros, choros calados e pequenas promessas ao vento, ficamos juntas. Três corações entrelaçados pelo amor, pelo tempo... e pela despedida que se aproxima devagar.
Mas ainda não chegou.
Ainda temos tempo.
E esse tempo, por mais curto que seja, será vivido até a última gota de luz.
...
[6 horas restantes]
A porta se abre com um leve rangido, e por um instante, o tempo parece desacelerar.
Os pais da Becky entram no quarto com passos calmos. O olhar da mãe dela vai direto pra mim, e mesmo sem palavras, eu vejo a dor contida nos olhos dela. Já o pai de Becky — tão sério, mas sempre gentil — segura um bichinho de pelúcia nas mãos. É o coelhinho preferido da nossa filha.
Moonie ainda está aninhada entre nós duas, meio acordada, os olhos lutando contra o sono. Ela ergue o rostinho e abre um sorriso pequeno ao ver os avós.
— Vovó? Vovô?
— Oi, minha pequena lua — diz a mãe de Becky, sentando-se ao lado dela com todo o cuidado do mundo.
— Viemos te levar pra comer um sorvete, lembra que você pediu? — o avô completa, mostrando o coelhinho.
Moonie sorri maior, mas olha pra mim, hesitante.
— E a mamãe Freen?
Aperto sua mãozinha.
— A mamãe vai ficar aqui com a mami Becs por um tempinho. Mas eu quero que você vá com a vovó e o vovô, tá bem? Vocês podem ver aquele pôr do sol que você ama tanto...
— Aquele rosinha?
— Aquele mesmo. O céu deve estar todo pintado de sonhos hoje.
Ela me olha com os olhinhos brilhando, um pouco confusa, um pouco triste. Mas ainda sem entender a dimensão daquilo tudo.
— Você promete que vai sonhar comigo depois?
Meu coração quase para.
— Prometo, meu amor. E quando você sonhar comigo, me conta tudo depois, tá?
Ela assente, depois se vira pra Becky, abraçando-a com força.
— Te amo, mami Becs.
— E eu te amo, minha lua — Becky diz, com a voz trêmula, beijando a testa da filha.
Ela então volta pra mim, me abraça com força, e sussurra baixinho no meu ouvido:
— Amo você até o céu acabar.
— E eu amo você do céu ao infinito.
Os pais de Becky a levam devagar, com um carinho que só o amor pode sustentar. Moonie vai embora sem lágrimas, distraída com o coelhinho, a promessa de sorvete e a fantasia de que tudo está bem.
Quando a porta se fecha, o silêncio no quarto muda.
Fica mais denso. Mais verdadeiro.
Becky se senta novamente ao meu lado, e nós apenas... nos deitamos. Sem pressa. Sem palavras. Apenas sentindo a presença uma da outra. As respirações se encaixando. Os corações batendo juntos, mesmo que em ritmos distintos.
Ficamos assim por muito tempo.
Até que Becky rompe o silêncio, a voz quase um sussurro:
— Promete uma coisa?
— Qualquer coisa.
— Que você vai aparecer pra mim, em sonho. Nem que seja só pra dizer que tá bem.
Fecho os olhos. Respiro fundo. Aperto sua mão com carinho.
— Eu prometo. E vou estar com você, em cada raio de sol, em cada noite de lua cheia. Você vai me sentir. Vai me ouvir. Vai saber que estou aqui.
Ela sorri. Aquele sorriso.
O sorriso que sempre me fez querer viver mais um dia.
— Promete mais uma coisa?
— Mais uma?
— Que nunca vai esquecer que... você me salvou.
A lágrima escorre antes que eu possa conter.
Porque a verdade é outra.
— Eu só consegui ser quem sou porque tive você comigo — sussurro. — Você sempre foi minha âncora. Minha linha de vida.
Ela se aconchega em mim. Tão pequena, tão preciosa.
E naquele silêncio entre uma confissão e outra, eu me pego desejando uma coisa impossível:
Mais tempo.
...
[5 horas restantes]
O tempo corre como se tivesse pressa de nos separar.
Mas a gente não deixa.
Nos agarramos a cada segundo como se fosse uma eternidade, tentando transformar o finito em algo eterno.
Conversamos sobre tudo. Sobre quando nos conhecemos. Sobre as noites em que brigamos por besteira. Sobre as viagens, os mimos, as cartas que deixávamos uma pra outra pela casa.
Becky está com a cabeça encostada no meu ombro, os dedos entrelaçados aos meus, e um sorriso que ainda me faz tremer por dentro.
— Lembra quando você me deixou um bilhete dentro do armário com um chocolate? — ela pergunta, com a voz leve.
— Claro. Você achou depois de três dias.
— E o chocolate já tava derretido.
— Mas o bilhete não — respondo, piscando.
Ela ri. Aquele riso dela... livre, cristalino, como o som mais puro da felicidade.
— "Espero que seu dia seja tão doce quanto esse chocolate... e que você esteja de meias, porque o chão do nosso quarto é frio e eu não quero que fique doente." — Becky recita, imitando meu tom todo bobo do bilhete.
— Hey, foi romântico, vai!
— Foi a coisa mais boba que eu já li. Mas também a mais você. Foi aí que eu percebi... que tava ferrada.
Dou um risinho.
— Porque tava apaixonada?
Ela me olha com aquele brilho que sempre me desmonta.
— Porque eu não ia conseguir viver sem você.
Silêncio. Mas é um silêncio que não pesa. É cheio de tudo que a gente sente e já sabe.
Eu me viro de leve, mesmo com o esforço, e nossos rostos se encontram tão de perto.
— Posso te beijar?
Ela sorri. Aquele sorriso dela, meu Deus...
— Sempre.
E então nossos lábios se encontram.
Um beijo lento, calmo, com gosto de despedida e eternidade ao mesmo tempo. Como se quiséssemos tatuar o sabor uma da outra na alma. Como se esse momento fosse durar pra sempre, ainda que o relógio dissesse o contrário.
— Seus beijos ainda têm gosto de lar — ela murmura, encostando a testa na minha.
— Porque você é meu lar.
Ela fecha os olhos, respira fundo, como se estivesse guardando aquele instante num frasco invisível dentro do peito.
— Eu queria te amar por mais quarenta anos.
— E eu te amaria por mais cem.
Nos abraçamos de novo.
Duas metades que sempre souberam onde se encaixam.
Duas vidas entrelaçadas por amor, por destino... por escolhas.
Mesmo quando o tempo corre.
Mesmo quando ele tenta nos arrancar uma da outra.
A gente ainda encontra um jeito de resistir.
Juntas.
...
[4 horas restantes]
Os beijos agora são mais lentos. Mais suaves. Mais curtos.
Não por falta de desejo. Mas porque meu corpo já não acompanha o amor que ainda pulsa com força dentro de mim.
Minha respiração está ficando cansada. Cada inspiração é um esforço calculado. Mas mesmo assim... mesmo assim eu ainda quero sentir o gosto dela. Ainda quero provar os lábios da mulher que foi o centro de tudo que vivi.
Becky percebe. Sempre percebe. E me beija com a delicadeza de quem segura uma flor ferida pelo tempo. Seus dedos acariciam minha pele como se quisessem memorizar cada traço meu.
— Freen... — ela sussurra, entre um beijo e outro. — Eu te amo tanto.
— Eu sei... — respiro fundo, ofegante. — E eu também. Sempre.
Acaricio o rosto dela com a ponta dos dedos, coloco uma mecha do seu cabelo atrás da orelha, e fico ali por um instante... apenas olhando.
— Amor... posso te pedir uma coisa?
— Qualquer coisa.
— Quando... quando você for ler a carta pra nossa Moonie...
Ela fecha os olhos por um segundo, já sentindo a dor do que ainda nem aconteceu.
— Faz isso no quintal. À noite. Quando o céu estiver limpo. Deixa ela olhar pra lua... e sentir que eu tô ali.
Becky não responde de imediato.
Em vez disso, ela me abraça com força. Com urgência. Enterra o rosto no meu pescoço, como se pudesse fugir do que está acontecendo se ficasse bem ali, colada a mim.
Sinto as lágrimas escorrerem por sua pele quente e encostarem na minha.
— Eu prometo — ela sussurra. — Eu prometo, meu amor...
Fecho os olhos por um instante. Mas então sinto.
Uma dor aguda.
Um aperto no peito.
Uma fisgada forte o suficiente pra me tirar o fôlego.
A respiração falha. E o monitor apita alto, rápido demais.
Becky se afasta num pulo, assustada.
— Freen?!
Levo a mão ao peito, tentando manter a calma, mas o pânico no olhar dela me denuncia que meu corpo está fraquejando mais do que deveria.
Ela se prepara pra chamar a enfermeira. Mas então... os batimentos se estabilizam. O bip do monitor volta ao normal. A dor diminui.
Volto a respirar, ainda ofegante, mas viva.
Becky se joga de novo ao meu lado, me abraçando como se pudesse me manter aqui só com a força daquele abraço.
Eu sinto seu coração disparado contra o meu peito.
Ela enterra o rosto no meu cabelo, e solta uma risadinha trêmula, com a voz embargada, tentando puxar algum humor pra nos salvar da dor.
— Ainda bem que você ligou. Mesmo sabendo que você não gosta de ligar pra ninguém...
Eu rio. Fraco, mas real.
— Eu sabia que você viria na hora.
Ela me aperta mais forte.
— Sempre. Onde você estiver, eu estarei.
E ali, no meio de tanto medo, tanto amor, tanto tempo que nos escapa... eu sinto:
Ela vai me carregar com ela pra sempre.
...
[3 horas restantes]
Becky não diz mais nada por um bom tempo. Ela apenas fica ali, ao meu lado, os dedos deslizando com carinho pela minha pele quente, como se cada toque fosse uma despedida em silêncio.
Meus olhos continuam fechados. Não por fraqueza, mas porque é assim que consigo sentir melhor o amor dela. Cada carícia, cada suspiro que ela solta sem perceber. A presença dela ainda me aquece por dentro. Ainda me faz sentir viva.
A porta se abre com delicadeza.
É a enfermeira.
Ela entra com um cuidado respeitoso, sem quebrar o sagrado que existe entre nós.
— Boa noite, senhoras... — ela diz, quase num sussurro. — Só vim checar os sinais vitais e trazer os documentos que precisam ser assinados.
Becky se endireita na poltrona. Eu permaneço de olhos fechados, até que sinto o toque frio do estetoscópio no peito e me obrigo a encará-la.
Ela checa meus batimentos. Minha respiração. A medicação.
— Você está estável... considerando tudo — diz com gentileza. — Ainda sente dor?
— Não — respondo, fraca. — Só cansaço.
Ela assente, compreensiva. Então estende os papéis na prancheta.
Becky franze a testa ao ver do que se trata.
— O que é isso?
— São os documentos do protocolo DNR... o "Do Not Resuscitate". Ela me pediu isso na entrada. Só falta assinar.
Becky segura minha mão com força.
— Freen... talvez a gente devesse pensar melhor nisso.
— Amor...
— E se for só um susto? E se der tempo de... de tentar? Você pode mudar de ideia...
— Becky — interrompo com doçura, olhando nos olhos dela. — Não vale a pena manter o meu corpo funcionando, se a minha mente já tiver ido embora. Se eu não for mais eu. Se eu não for mais a sua Freen...
Ela chora.
Lágrimas grossas.
As mãos tremem.
Mas ela não discute mais.
Assino os papéis com a pouca força que tenho. A enfermeira recolhe a prancheta, murmura algo gentil, e nos deixa sozinhas outra vez.
Becky se desfaz.
— Eu realmente não vou mais te ver... depois que...
Ela não consegue terminar. O choro toma conta. Eu reúno cada partícula de energia que me resta pra abraçá-la.
Beijo os cabelos dela. Longos. Macios. Com cheiro de casa.
— Meu amor... sempre que quiser me ver, estarei a uma foto ou um vídeo de distância. Minha galeria tá cheia da nossa história. Dos nossos momentos felizes...
Ela balança a cabeça, chorando.
— Não, não... isso não é o suficiente... não é...
Seguro seu rosto. O queixo. Acaricio suas lágrimas.
— Quando sentir saudade de mim, olhe pra nossa filha. Lá você vai encontrar nossos traços misturados. Ela é a mais bela obra de arte que podíamos ter feito juntas.
Becky soluça, mas sorri.
— Você fala como se fosse fácil...
— Eu sei que não é. Mas... o tempo vai ensinar.
O tempo. Sempre ele.
E ele tá acabando.
Becky aperta minha mão com mais força, como se pudesse me segurar aqui só por isso.
— Eu não vou dizer adeus, Freen.
— Nem eu.
— Só me promete... que não vai ter medo.
Eu encosto minha testa na dela. Os olhos úmidos. Os corações despedaçados.
— Eu não tenho. Porque você tá aqui.
Ela fecha os olhos, chora com tudo que tem, mas ainda assim sorri.
E então eu sussurro:
— Don't you know, you're my lifeline?
Ela me beija.
Devagar.
Com todo amor que existe no mundo.
Como se aquele instante pudesse durar até depois do fim.
...
[2 horas restantes]
O quarto é banhado pela luz suave de um abajur no canto. Não há mais ruído de passos no corredor, nem vozes. O hospital inteiro parece ter parado por nossa causa. Como se o mundo soubesse que essa noite precisava ser só nossa.
Becky está deitada ao meu lado, os dedos entrelaçados nos meus, a cabeça repousada no meu ombro. Seus olhos — lindos, tristes, infinitos — não desgrudam dos meus. Mesmo marejados, mesmo cansados, mesmo partidos.
Minha respiração está mais curta agora. O ar parece vir em ondas irregulares, pequenas marés que não obedecem mais meu corpo como antes.
Ela percebe.
Mas não fala.
Só fica ali.
Comigo.
— Você tá com frio? — ela pergunta, com a voz embargada.
— Não... mas se você quiser me abraçar, vou fingir que sim.
Ela sorri. Aquele sorriso que parece doer de tão cheio de amor e dor ao mesmo tempo.
Se aproxima mais. Me envolve como se o calor dela pudesse deter o tempo. Como se o mundo todo coubesse no espaço entre nossos dois corações.
Não queremos mais falar.
As palavras já foram todas ditas.
O silêncio agora é mais precioso.
O tipo de silêncio que grita tudo que a gente sente. Que pulsa com tudo que a gente viveu. Que guarda cada memória.
Becky me beija.
Não é um beijo qualquer.
É um beijo de saudade. De desespero. De amor eterno.
Seus lábios tremem. Os meus também.
Ela se despedaça por dentro.
E eu... só queria mais tempo.
Mas não peço isso.
Peço outra coisa.
Com a voz quase sumida, fraca, entre um suspiro e outro:
— Me ama... só mais uma vez.
Ela me olha.
Entende.
Sem precisar de mais nenhuma palavra.
Nos despimos do medo.
Nos despimos da dor.
Ali, no quarto frio, o calor dos nossos corpos era tudo que restava. Tudo que precisávamos.
Mesmo que fosse devagar.
Mesmo que cada movimento fosse um esforço.
Mesmo que o tempo estivesse nos cobrando a conta.
Ela me ama como se estivesse tentando gravar meu corpo na alma. E eu me deixo amar.
Nossos corpos se procuram como se fossem se perder para sempre.
Porque serão.
E é por isso que cada toque importa tanto.
Cada suspiro é uma tentativa de eternidade.
Cada carícia é uma prece.
E quando finalmente paramos, quando só nos resta o cansaço, o silêncio volta como um velho amigo. Cobrindo tudo com doçura.
A respiração dela se acalma.
A minha... falha mais uma vez.
Mas ainda estamos aqui.
Apenas nós duas.
E o amor.
O amor fica.
...
[1 hora restante]
Estamos deitadas, despidas, como se nossos corpos tivessem se moldado um ao outro com o passar dos anos. Como se não existisse um "eu" ou "você" — só "nós".
Minhas costas tocam o colchão, e Becky está sobre mim, a cabeça repousando suavemente no meu peito. Seu ouvido colado ao meu coração, como se quisesse memorizar o som dele. Como se pudesse impedir que ele parasse de bater.
Seus dedos estão entrelaçados aos meus, e nossos olhos conectados em silêncio.
O tempo já não importa mais.
— Me perdoa... — minha voz sai fraca, trêmula. — Por não ter sido tudo o que você queria.
Ela levanta o rosto na hora. Os olhos marejados, mas acesos.
Cheios de amor. Daquele amor que atravessa a dor.
— Não diz isso... — ela sussurra. — Você foi tudo.
Tudo o que eu precisava.
Tudo o que eu amo.
A lágrima que escorre no meu rosto não é de dor.
É de gratidão.
Ela se inclina e beija minha testa com a suavidade de quem sabe que aquele gesto pode ser o último.
— Você é minha linha de vida, Freen. E sempre será.
Nos mantemos assim por um tempo que parece suspenso no ar. Até que ela lentamente se levanta, com todo o cuidado do mundo, como se eu fosse feita de cristal prestes a se partir.
Ela veste a própria roupa — as mãos tremem um pouco — e então me ajuda com a roupa do hospital.
Seus dedos tocam minha pele com delicadeza, quase como se estivesse pedindo desculpas por cada botão apertado, cada manga puxada.
Depois, deitamos juntas de novo.
Fico de lado, e ela também.
Sua mão repousa sobre o meu peito, bem ali, onde meu coração ainda insiste em bater.
Está mais fraco.
Mais lento.
Mas ainda está aqui.
A respiração se tornou irregular.
Meus olhos pesam. Quase não consigo mais mantê-los abertos, mas eu luto contra isso.
Eu não quero parar de ver seu rosto.
Seu rosto... é minha casa.
Os olhos âmbar dela — tão cheios de vida, tão lindos mesmo na tristeza — me seguram aqui.
E mesmo sem força, mesmo sem ar, eu sussurro:
— Ainda tô aqui...
Becky acaricia meus cabelos, encosta a testa na minha, e em silêncio, as lágrimas dela escorrem.
E ali, no limite entre a presença e a partida, ela sussurra só pra mim:
— Eu sei, meu amor... eu sei...
...
[Últimos segundos]
O mundo está silencioso.
Como se estivesse prendendo a respiração junto comigo.
Meus olhos pesam.
Cada piscada dura mais que a anterior. Cada fôlego se arrasta.
Meu corpo já não responde como antes.
Mas eu ainda a sinto.
A mão dela, firme sobre meu peito, como se pudesse manter meu coração batendo só com o toque.
Os olhos âmbar, molhados, assustados...
Mas ainda lindos.
Ainda meus.
Minhas lembranças se apagam devagar, como fotos antigas desbotando.
A infância.
A juventude.
O primeiro beijo.
A risada dela no café da manhã.
A forma como ela dizia meu nome quando me amava.
Tudo se apaga, mas os olhos dela ficam.
A luz deles.
O calor.
A última coisa que verei.
Meu corpo se rende.
Mas minha alma não.
Minha alma ainda quer ficar.
Ainda quer mais um beijo.
Mais um dia.
Mais um "eu te amo".
Mas o tempo não espera ninguém.
Minha linha de vida...
Com um último sopro, minha mente balbucia, no silêncio do coração:
Você não sabe que... é minha linha de vida...
...
O som do monitor ecoa.
Um apito contínuo.
Cruel.
Inevitável.
[flatline]
Becky segura meu corpo como se pudesse trazê-lo de volta.
Mas eu já estou livre.
Pairando no quarto.
Na lembrança.
No amor.
E mesmo sem palavras, ela me sente.
Porque o amor...
O amor fica.
FIM 🕊️