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By sunchalamet

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By sunchalamet

CAPÍTULO SEIS
ventos de procura

     ME AGACHEI PARA PEGAR MAIS
uma peça de roupa, sentindo a umidade fria contra a ponta dos dedos e a aspereza do jeans encharcado. Estiquei a calça sobre a corda improvisada e prendi com dois pregadores de madeira, que rangiam levemente sob a pressão. O sol da tarde era impiedoso, castigando minha pele e fazendo a tarefa parecer ainda mais interminável. Não que eu realmente me importasse — depois do "funeral" de Otis, qualquer coisa que me mantivesse ocupada era bem-vinda. Eu precisava esfriar minha mente. Precisava esquecer. Nem que fosse por alguns minutos.

     Ouvi passos se aproximando, abafados contra a terra seca, mas ignorei. Só virei o rosto quando senti a presença se fazer sólida ao meu lado.

     — Precisa de ajuda? — a voz, suave como veludo e cheia de uma gentileza rara nesse mundo quebrado, chegou aos meus ouvidos.

     Me permiti um sorriso discreto antes de responder:

     — Se você não se importar... — apontei para o cesto ainda quase cheio de roupas molhadas. — Seria muita gentileza da sua parte.

     — Ah, não é nada, menina. — Carol respondeu, com um sorriso caloroso, enquanto se agachava para pegar uma blusa que reconheci como sendo de Beth. — Eu gosto. — acrescentou, enquanto alisava o tecido e estendia cuidadosamente a peça na corda. — Fazia muito disso... Antes do mundo acabar. Faz parecer que as coisas ainda podem ser normais. — ela me lançou um olhar breve, mas cheio de uma ternura silenciosa.

     — É, você tem razão.

     O vento balançava levemente as roupas já estendidas, fazendo-as dançarem sob o céu claro, como se a vida ainda corresse em algum lugar além das cercas da fazenda.

     Enquanto estendíamos as roupas, o silêncio entre nós era confortável, quebrado apenas pelo rangido dos pregadores e o balançar das peças ao vento. Eu já tinha trocado algumas palavras rápidas com Carol, com Andrea e com Dale. Daryl e eu só havíamos nos apresentado — ele parecia ser do tipo que preferia o silêncio a qualquer conversa desnecessária, e sinceramente, eu entendia.

     Eles tinham chegado à fazenda naquela manhã, pouco depois do almoço. Rick explicou para o meu pai a situação: estavam procurando uma menina desaparecida, a mesma história que o Glenn já havia comentado comigo. No meio da busca, Carl acabou sendo baleado por Otis. Era sério, mas meu pai, como sempre, decidiu ajudar. Aceitou que eles montassem suas barracas por ali, perto da casa, pelo menos até Carl se recuperar e eles encontrarem a garota.

     Eu sabia que era a coisa certa a se fazer, mas ainda era estranho ver tanta gente nova circulando pela fazenda. Estranho, e, de certa forma... reconfortante.

     Decidi puxar conversa com Carol. Talvez tentar, de alguma forma, fazer com que ela se sentisse um pouco menos perdida do que todos nós já estávamos.

     — O Daryl... — comecei, ajeitando uma blusa de botão no varal. — Ele parece ser meio fechado, não é?

     Carol soltou uma risadinha breve, sem me encarar.

     — É, ele é. — respondeu, sua voz baixa, quase como se não quisesse ser ouvida por mais ninguém além de mim. — Uma daquelas pessoas que ergue uma muralha ao redor de si mas, às vezes, acho que isso não é necessariamente ruim. — ela ajeitou uma camiseta e prendeu com cuidado. — Talvez ele só seja mais reservado.

     Assenti, compreendendo melhor do que eu gostaria.

     — Não é fácil confiar nas pessoas hoje em dia. — murmurei.

     Carol me lançou um olhar cheio de entendimento, e por um momento, senti que havia uma história profunda escondida ali. Algo que ela carregava, mas ainda não sabia se devia ou podia dividir.

     — O Glenn comentou sobre a menina que estão procurando... — falei devagar, medindo as palavras. — A Sophia.

     Carol parou por um instante, a mão suspensa no ar, segurando uma calça.

     — Sim... — respondeu, a voz embargada de tristeza.

     — Me desculpe. — apressei-me em dizer. — Eu não queria ser invasiva.

     — Está tudo bem. — ela balançou a cabeça, como se tentasse afastar a dor e respirou fundo. — A Sophia é minha filha.

     Meu peito apertou. De repente, todo o peso daquela busca, toda a angústia que pairava no ar, fez sentido. Deixei o pregador de lado e toquei suavemente o braço dela, um gesto de solidariedade, simples mas cheio de significado.

     — Nós vamos encontrá-la. — prometi, com toda a certeza que eu podia reunir no meu peito.

     Carol me olhou e, pela primeira vez, sorriu de verdade. Pequeno, mas verdadeiro.

     — Obrigada, Caroline.

      Continuamos estendendo as roupas, lado a lado, como se aquele pequeno ato fosse capaz de costurar de volta um pedaço do mundo que tínhamos perdido. Eu jamais queria estar no lugar dela, passar pela angústia de ter minha filha sozinha nesse mundo.

     SENTEI-ME NOS DEGRAUS DA
varanda, cruzando as pernas com a familiaridade de quem conhece cada farpa daquela madeira antiga. O sol começava a se esconder atrás das árvores, lançando sombras compridas sobre os campos dourados. A brisa morna da tarde balançava os varais, onde os lençóis recém-lavados dançavam como fantasmas pacíficos. Maggie e Beth estavam sentadas lado a lado em pequenos bancos, descascando vagens com movimentos automáticos. Era uma cena que, em tempos normais, poderia ser confundida com tranquilidade — mas nada era normal ali, e tampouco tranquilo.

     — Eles são... diferentes, não são? — perguntou Maggie, rompendo o silêncio.

     — São. — respondeu Beth, com um tom mais suave. — Mas parecem boas pessoas.

     — Sempre parecem. — comentei, mais para mim mesma do que para elas.

     Levantei-me devagar, me aproximei e estendi a mão.

     — Me deixem ajudar vocês.

     Maggie me entregou uma faca sem dizer nada. Sentei-me ao lado dela, peguei um punhado de vagens e comecei a trabalhar, sentindo o cheiro verde e fresco do alimento se misturar com a poeira da terra.

     Enquanto minhas mãos se ocupavam, meus olhos se permitiram vagar pelo horizonte daquela nova configuração caótica que a fazenda havia se tornado. Do lado oposto, vi Lori, Carol, Glenn e T-Dog terminando de organizar as barracas. Os movimentos eram meticulosos, como se arrumar lonas e cobertores pudesse dar algum sentido àquela nova vida improvisada.

     Ergui o olhar. No alto do trailer, Andrea estava sentada ao lado de Dale. Ele segurava um binóculo, observando tudo com a postura cuidadosa de quem sente que é o último responsável por manter alguma ordem no mundo.

     E então os vi.

     Ao longe, Rick, meu pai, Shane, Daryl e Jimmy estavam agrupados em torno da caminhonete. Um mapa estava estendido sobre o capô, e gesticulavam de forma intensa. Planejavam. Discutiam. Buscavam.

     — Você está observando demais, Care. — murmurou Beth, com um sorriso malicioso. — Está interessada no policial fortão?

     Ergui uma sobrancelha, sem desviar o olhar.

     — Ele é policial, de fato, então? — respondi.

     — Sim, Shane trabalhou com o Rick antes de tudo isso acontecer. São melhores amigos desde então.— explicou ela.

     — Nossa, você é fofoqueira demais, Elizabeth. — inclinei a cabeça ligeiramente, brincando.

     Minhas irmãs riram, mas eu não

     — Não é isso. Eu só... estava pensando naquela mulher. Carol. — admiti finalmente.

     — A mãe da menina? — perguntou Maggie.

     Assenti, cortando uma vagem com mais força do que o necessário.

     — Vocês não acham que aquela criança no celeiro poderia ser a filha dela?

     O silêncio que se seguiu não foi de surpresa, mas de incômodo. Senti o ar mudar ao redor de nós.

     — Caroline... — começou Maggie, com uma advertência na voz.

     — Eu sei, eu sei. Não deveríamos falar sobre isso. Mas eu só estou dizendo... E se for? E se aquele monstro lá dentro for mesmo a Sophia?

     — Fale baixo! — sussurrou Maggie, olhando para os lados.

     — Por quê? — retruquei. — Por que esconder isso de uma mãe desesperada? Se fosse Amelia, eu gostaria de saber. Mesmo que fosse a pior verdade possível.

     — E se você estiver errada? E se dissermos algo e estragarmos tudo? — rebateu Maggie, com firmeza. — Ou você acha que essas pessoas que estavam lá fora entenderiam o porquê prendemos nossa família e conhecidos doentes no celeiro? — agora ela olhava para mim com uma expressão de raiva.

     Beth olhava de uma para a outra, silenciosa, segurando a faca no ar, esquecida da tarefa.

     — Eu não aguentaria viver com essa dúvida. Eu preferiria a dor da verdade do que esse vazio. — insisti. — E vocês precisam abrir os olhos. — olhei para minhas duas irmãs agora. — O Shawn, a Annette... Ninguém dentro daquele celeiro vai voltar. Eles estão mortos e já faz muito tempo.

     Vi olhos de Beth encherem de lágrimas e ela se levantou bruscamente, indo para dentro de casa e batendo a porta.

     — Olhe o que você fez! — Maggie quase gritou. — Você sempre foi assim. — disse ela, irritada. — Sempre se metendo onde não foi chamada. Sempre achando que tem razão em tudo.

     — E você sempre preferiu ignorar o mundo para fingir que está tudo bem. — respondi, sem me exaltar, mas com frieza suficiente para que ela desviasse o olhar.

     Antes que ela retrucasse, escutamos vozes. Patricia surgiu pelo canto da casa, trazendo Amelia pela mão. A menina carregava um cestinho de palha com alguns ovos dentro e sorria, orgulhosa da pequena missão cumprida.

     — Olhem só quem virou ajudante de fazenda. — disse Patricia, com um sorriso gentil, apesar dos olhos inchados e vermelhos.

     A tensão entre Margaret e eu se dissipou de forma instantânea, como se nunca tivesse existido. Amelia correu até mim e mostrou o cesto.

     — Peguei seis inteirinhos!

     — Isso é mais do que muita gente grande conseguiria. — respondi, sorrindo. — Está se saindo muito bem. — acariciei seus cabelos.

     Maggie voltou a trabalhar em silêncio. Patricia sentou-se na escada, cansada. E eu me permiti uma última olhada em direção à caminhonete.

     A busca pela menina iria continuar. Mas outras buscas também haviam começado — por respostas, por verdades, por limites.

     — Eu posso ver o menino? — a voz de Mia me tirou de meus devaneios.

     Demorei um segundo para entender. O menino. Carl.

     Ergui o olhar para Patricia, buscando uma resposta. Mas antes que ela dissesse qualquer coisa, eu mesma falei, tentando ser gentil.

     — Não sei se é uma boa ideia agora, filha… Ele ainda está se recuperando, e bem, seria melhor perguntar para os pais dele, não é?

     O brilho nos olhos de Amelia apagou tão rápido quanto apareceu. Ela abaixou o rosto.

     — Está bem, me desculpe.

     Suspirei. O que eu poderia fazer? Ela já perdera tanto. Nunca tivera um pai. Perdeu Shawn, Annette e Otis. Os amigos. A escola. Os passeios no parquinho. A infância. E agora, ao descobrir que havia outra criança por perto, a esperança voltou — mesmo que só um fiapo dela. Como eu poderia apagar isso?

     — Ok, vem cá. — me levantei e estendi a mão para ela. — Vamos ver com a Lori, está bem? Mas você só vai se aproximar se ela disser que pode. — ela assentiu com um sorriso tão grande que poderia rasgar suas bochechas.

     Peguei Amelia pela mão, puxando ela comigo, e descemos os degraus do alpendre.

     Quando encontramos Lori perto das barracas ela estava organizando umas roupas em um balde de alumínio. Ajeitou-se ao me ver e ofereceu um sorriso gentil.

     — Lori. — chamei com um aceno. — Tem alguém aqui que quer muito conhecer o Carl... — brinquei, apontando discretamente com a cabeça para Amelia, que estava envergonhada.

     Lori riu, limpando as mãos na calça jeans já desbotada.

     — Oi, querida. — disse, se abaixando ao nível de Mia. — Claro que você pode ver ele. Só… não vão poder brincar ainda, está bem? O Carl ainda está se recuperando. — minha filha assentiu. — Mas sei que logo poderão correr por esses campos.

     Amelia a olhou, um sorriso tímido surgindo de novo. Eu vi ali, por um segundo, a criança que ela deveria ter sido desde sempre.

     — Obrigada. — sussurrou.

     — Obrigada, Lori. — falei também, minha voz saindo baixa, quase trêmula. — Ela sempre foi muito sozinha. E agora, com tudo isso, sem escola, sem vizinhos, sem primos... eu achei que talvez, se ela tivesse alguém da idade dela…

     — Eu entendo. — disse Lori, me encarando com sinceridade, estendendo a mão para apertar meu braço gentilmente. — Espero que eles se deem bem. O Carl também precisa disso. — concordei com a cabeça e sorri. — Vamos lá? — ela completou, erguendo-se e estendendo a mão para Amelia.

     Minha menina me olhou como se pedisse permissão. Assenti com um sorriso, e ela foi, segurando a mão de Lori como se estivesse indo conhecer o mundo inteiro de novo.

     As duas caminharam em direção à casa, e eu fiquei parada, assistindo aquele pequeno milagre de conexão acontecer. Patricia caminhou logo atrás delas, resmungando algo sobre como as crianças cresciam rápido demais.

     Meus braços se cruzaram sozinhos, como se o corpo buscasse um abraço que ninguém mais podia me dar.

     Dei um passo hesitante para frente, perto da caminhonete, os homens ainda conversavam. A tensão pairava ali, mesmo sem palavras. Dava para sentir no ar — pesado, úmido, cheio de perguntas.

     Meus olhos buscaram a figura de meu pai, que ainda estava entre eles, provavelmente tentando argumentar algo que os outros não queriam ouvir. Hershel era um homem teimoso, mas justo. Só que ele era, acima de tudo, um pai. E, como pai, era impossível para ele ignorar o que acontecia comigo. Era por isso que eu sabia que não podia me aproximar enquanto ele estivesse ali.

     Me encostei em uma das colunas da varanda, observando em silêncio.

     E, assim como imaginei, poucos minutos depois, ele suspirou, cruzou os braços e se despediu dos outros com um aceno lento. Voltou para casa sem me olhar. Talvez soubesse que eu o estava observando. Talvez quisesse me deixar aquele espaço.

     Esperei até vê-lo desaparecer porta adentro.

     Só então descruzei os braços e desci os degraus com passos lentos, me aproximando do quarteto, onde os sussurros voltavam a crescer como vento antes da tempestade.

     Caminhei devagar, como quem pisa em um terreno minado. O grupo estava reunido ali — Rick com aquela postura sempre alerta, Daryl encostado no capô com os braços cruzados, Shane esfregando as têmporas como se o mundo inteiro doesse dentro da cabeça dele, e Jimmy... bem, Jimmy era o Jimmy, com os olhos meio perdidos tentando acompanhar a conversa como quem assiste a um jogo que não sabe as regras.

     — Eu quero ajudar. — anunciei.

     Quatro pares de olhos se viraram para mim ao mesmo tempo. Era como ter aberto a porta errada no momento errado. Ficaram me encarando, como se eu tivesse dito que ia caçar mortos-vivos com uma colher de chá.

     — Você... quer ajudar? — Shane arqueou uma sobrancelha, com um meio sorriso debochado. — Achei que você preferia ficar costurando gaze com sua irmã e servindo chá para quem está gripado.

     — E eu achei que você preferia trabalhar em dupla com o Otis — retruquei, a voz mais cortante do que eu pretendia. — Mas a vida surpreende a gente, não é?

     O silêncio caiu como uma pedra entre nós.

     Eu sei que era uma piada de mau gosto, não deveria brincar com pessoas que já morreram, principalmente Otis que foi algo recente. No entanto, quando percebi, já havia falado.

     Shane desviou o olhar. Rick passou a mão na barba curta, tenso. Daryl soltou um resmungo baixo, quase como um riso de canto de boca. Jimmy coçou a nuca, sem saber se ria ou fugia.

     — Agora falando sério, — continuei, respirando fundo — eu conheço bem essas terras. Antes de ir para faculdade, eu ajudava meu pai quase todos os dias no pasto. Odeio a vida no campo, mas conheço os atalhos, os córregos escondidos, os pedaços que ficam alagados nessa época do ano... Sei até onde as cercas estavam quebradas antes do mundo acabar.

     — Isso é verdade. — murmurou Jimmy, com um sorriso envergonhado. — Ela conhece mesmo. Teve uma vez que ela achou um bezerro nosso que tinha se perdido. Ninguém mais achava e ela foi direto nele, com a cara e a coragem.

     — Está vendo? — falei, olhando pra Rick. — O Jimmy pode ajudar, e ninguém questiona. Mas quando sou eu, é surpresa?

     — Não é isso. — Rick disse, levantando as mãos num gesto pacificador. — É só que… é perigoso lá fora. Não sabemos onde a Sophia está. Pode ter mortos. E não podemos usar armas.

     — Porque o Hershel proibiu. — completou Shane com um suspiro, como quem já discutiu isso mil vezes.

     Assenti, sem ressentimento.

     — Meu pai é muito religioso. Ele não aceita armas, a não ser para caça. E mesmo assim, só quando precisa. Ele acredita que violência traz violência. Que foi isso que derrubou o mundo. Eu... não concordo com tudo, mas entendo. — olhei para cada um.

     — Então como vocês pretendem procurar sem nada? — Daryl perguntou, cético.

     — Não vamos sem nada. Eu vou falar com ele sobre isso. — respondi. — E tendo gente que conhece o terreno, vamos conseguir achar a menina. Eu posso mostrar por onde começar. Tem um vale raso depois da cerca leste que costuma atrair animais, talvez uma criança tenha ido por ali. Ou pode ter se escondido no celeiro velho da fazenda abandonada, uns dois quilômetros daqui.

     O grupo trocou olhares. Daryl assentiu, Rick ficou pensativo. Shane parecia prestes a refutar, mas ficou quieto.

     — Está bem. — disse Rick por fim. — Vamos montar os grupos. Shane e eu cobrimos o lado oeste. Daryl vai com Jimmy pelo leste. Você pode ficar com o mapa e orientar quem voltar. Ajudar a refazer as rotas.

     — Claro. — concordei, firme.

     Rick hesitou, então se virou para mim mais uma vez.

     — Tem certeza que isso não vai ser um problema? Digo, o seu pai. Ele vai aceitar você envolvida nisso?

     Sorri, mas havia uma ponta de amargura no meu rosto.

      — Rick, eu tenho quase trinta anos. Eu sou adulta. Meu pai não pode decidir tudo por mim. E se ele tentar, bom... ele vai ter que aceitar que o mundo mudou. E eu também.

     Rick assentiu, com aquele olhar sereno e atento que me fazia confiar nele, mesmo sem o conhecer. E então se afastou com Jimmy e Daryl.

     Ficamos apenas Shane e eu, lado a lado, sob o céu cheio de nuvens.

     Ele esfregava as mãos, o rosto duro, os olhos vazios.

     — Você está bem? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.

     Ele soltou uma risada seca.

     — Essa é uma pergunta idiota, não é?

     — É, eu sei. — murmurei, cruzando os braços. — Foi idiota da minha parte. Eu só... achei que era educado perguntar.

     — É... — respondeu ele, sem me encarar.

     Silêncio.

     O vento levantou um pouco de poeira. A caminhonete estalou com o calor do motor ainda recente.

     — Você deve estar bem traumatizado ainda com o que aconteceu com o Otis. — soltei, mais como um pensamento em voz alta do que uma acusação. Novamente tocando naquele assunto.

     Dessa vez, ele me olhou. Os olhos dele estavam vermelhos, fundos, cansados. Mas havia algo ali que me incomodava. Uma sombra que não era só culpa ou tristeza. Era... desconforto. Culpa mal explicada. A mesma expressão que eu havia percebido antes.

     — Foi uma merda. — disse, simples. — Só isso. Uma merda completa.

     — Imagino. — eu não sabia mais o que falar.

     Ele encarou o chão. E, pela primeira vez, pareceu de verdade menor do que aquele cara cheio de confiança que atirava sem hesitar.

     Eu não sabia o que ele tinha feito. Não podia provar nada. Mas tinha algo no olhar dele... E mesmo assim, naquele momento, entre tanta dor, eu escolhi não apertar.

     O silêncio ainda pairava entre nós, denso como o calor do fim da tarde. Eu mantive os olhos nele por um segundo a mais. Ainda tinha aquele olhar vago, cansado… mas diferente. Como se estivesse tentando se recompor por dentro.

     Resolvi quebrar o clima de vez.

     — Policial, hein?

     Ele me lançou um olhar confuso.

     — Como é?

     — Eu achei mesmo que você fosse. Tem essa pose de durão. Chega em um lugar e já quer tomar conta, dá ordens como se tivesse farda invisível.

     Um canto da boca dele se ergueu num quase sorriso.

     — E isso é ruim?

     — Para quem gosta de ser mandado, não. Mas comigo não funciona. — falei enquanto começava a dobrar o mapa. — E também tem aquele jeito meio mandão cansado. Típico de quem já viu coisa demais e aprendeu a guardar tudo num canto escuro da cabeça.

     Ele riu. De verdade, dessa vez. Baixo, mas genuíno.

     — Agora você é psicóloga também?

     — Não, sou só observadora. E boa nisso, aliás.

     — Hmm. — murmurou. — Você acerta metade das coisas. A outra metade é só palpite metido a esperto.

     — Então talvez eu devesse virar policial também. — respondi com um sorriso leve, guardando o mapa debaixo do braço.

     Começamos a caminhar lado a lado em direção ao acampamento improvisado, onde os outros estavam.

     — Então antes da faculdade você era dedicada aos serviços da fazenda? — ele perguntou, quebrando o silêncio.

     — Ajudava. Sempre fui mais útil com botas e chapéu do que com vestido de domingo. E você?

     — Eu... — ele hesitou, como se precisasse lembrar quem era antes de tudo isso. — Eu tentava manter a cidade em ordem. Era o que dava para fazer.

     — E agora?

     Ele me olhou, um pouco surpreso pela pergunta.

     — Agora eu só tento manter a mim mesmo inteiro.

     — É um começo. — murmurei.

     Chegamos até a minha casa e ele segurou a porta para mim com um gesto automático, e eu entrei, passando por ele com um aceno leve de cabeça, me despedindo.

     Naquele instante, sem nenhuma promessa, sem explicações, só havia uma trégua. E talvez fosse só isso que a gente conseguisse dar um pro outro.

     Por enquanto. Até eu descobrir o que realmente aconteceu entre ele e Otis.

© sunchalamet, 2025

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