A sorte da democracia está ligada, já o verificámos, à sorte do movimento operário. Mas a evolução da democracia terá tornado supérflua ou impossível uma revolução proletária visando a conquista do poder do Estado, a conquista do poder político?
Bernstein resolve este problema sopesando cuidadosamente os aspectos negativos da reforma legal e da revolução, mais ou menos como se estivesse a pesar pimenta ou canela numa cooperativa de consumo. No caminho legal, vê a acção da razão, no revolucionário, a do sentimento, no trabalho reformista, um método lento, na revolução, um método rápido de progresso histórico; na legalidade, uma força metódica, na insurreição, uma violência espontânea.
É de facto por demais conhecido que o reformador pequeno-burguês vê em tudo um lado "bom" e um lado "mau" e que anda por todos os caminhos. É também um facto bem conhecido que o curso real da história não se inquieta absolutamente nada com as combinações pequeno-burguesas e deita abaixo os andaimes bem construídos e os seus melhores cálculos, sem considerar os "lados bons" das coisas, tão bem escolhidos na mistura.
De facto, na história, a reforma legal ou a revolução põem-se em marcha por motivos mais poderosos que o cálculo das vantagens ou dos inconvenientes comparados entre os dois métodos.
Na história da sociedade burguesa, a reforma legal teve por efeito reforçar progressivamente a classe ascendente até se sentir suficientemente forte para tomar o poder político, deitar abaixo o sistema jurídico e construir um novo. Bernstein, condena os métodos de conquista do poder político, censurando-os por retomarem as teorias blanquistas da violência, contribuição prejudicial do blanquismo ao que, desde há anos, é o eixo e a força motriz ,da história humana. Desde que existem sociedades classistas e que a luta de classes constitui o motor essencial da história. a conquista do poder político foi sempre o objectivo de todas as classes ascendentes, assim como ponto de origem e ponto final de todo o período histórico. É o que constatamos nas longas lutas dos camponeses contra os financeiros e a nobreza na antiga Roma, nas lutas entre a nobreza e o clero e artesãos contra fidalgos na Idade Média, tal como da burguesia contra o feudalismo nos tempos modernos.
A reforma legal e a revolução não são métodos diferentes do progresso histórico que se possam escolher à vontade como se se escolhessem salsichas ou carnes frias para almoçar, mas factores diferentes da evolução da sociedade classista, que se condicionam e completam reciprocamente, excluindo-se, como, por exemplo, o pólo Norte e o pólo Sul, a burguesia e o proletariado.
Em cada época, a constituição legal é um simples resultado da revolução. Se a revolução é acto de criação política na história de classe, a legislação é a expressão, no plano político, da existência vegetativa e contínua da sociedade. O trabalho legal das reformas não tem nenhuma forma motriz própria, independente da revolução; só se realizará em cada período histórico na direcção que lhe foi impulsionada pela última revolução, e também durante o período de tempo em que essa impulsão se continuar a fazer sentir ou, para falar concretamente, exclusivamente no quadro da forma social originada pela última revolução. Estamos agora no centro do problema.
É inexacto e contrário à verdade histórica apresentar-se o trabalho de reforma como uma revolução diluída no tempo, e a revolução como uma reforma condensada. Uma revolução social e uma reforma legal não são elementos que se distingam pela sua duração, mas pelo seu conteúdo; todo o segredo das revoluções históricas, da conquista do poder político, reside precisamente na passagem de simples modificações quantitativas, numa nova qualidade ou, concretizando, na passagem de uma dada forma de sociedade a outra num período histórico.
Quem se pronuncie a favor da reforma legal, em vez do encontro do poder político e da revolução social, na realidade não escolhe uma via mais agradável, mais lenta e segura, conduzindo ao mesmo fim; mas tem um objectivo diferente; em vez de procurar edificar uma sociedade nova, contenta-se com modificações sociais da sociedade anterior. Assim, as teses políticas do revisionismo conduzem à mesma conclusão que as suas teorias económicas. Na essência, não visam realizar o socialismo, mas reformar o capitalismo, não procuram abolir o sistema do salariado, mas dosear ou atenuar a exploração, numa palavra: querem suprimir os abusos do capitalismo, mas não o capitalismo.
No entanto, o que acabamos de dizer das funções da reforma legal e da revolução não será unicamente válido para uma luta de classes passada?
Será tarefa da reforma legal, devido à evolução do sistema jurídico burguês, fazer passar a sociedade de uma fase histórica a outra? A conquista do poder do Estado pelo proletariado, não se terá tornado uma "frase vazia de sentido", como pretende Bernstein?
O contrário é que é verdade. O que distingue a sociedade burguesa das outras sociedades classistas, da sociedade antiga e da sociedade feudal? É o facto de o domínio de classe não repousar nos "direitos adquiridos" mas em verdadeiras relações económicas, no facto do salariado não ser uma relação jurídica mas uma relação puramente económica. Não se encontrará em todo o actual sistema jurídico nenhum estatuto legal de dominação de classe. Se existem traços, são sobrevivências da sociedade feudal, tal como o regula- mento do estatuto da criadagem.
Então, como suprimir progressivamente a escravatura do salariado "pela via legal", se não se traduz em leis? Bernstein que pretende, por intermédio da reforma legal, abolir o capitalismo, encontra-se na mesma situação do polícia russo de Ouspenski, que contava assim a sua aventura: "Ràpídamente apanhei o brincalhão pelo colarinho! Mas que vejo? O miserável não tinha colarinho!" Eis o problema...
"Todas as sociedades anteriores se baseavam no antagonismo entre a classe opressora e a classe oprimida" (Manifesto Comunista). Mas, nas precedentes fases da sociedade moderna, esse antagonismo traduzia-se em relações jurídicas bem determinadas; por esse facto, podia permitir, de certa maneira, um lugar para as novas relações no quadro das antigas. "Mesmo no apogeu da servidão, o servo era elevado à categoria de membro da comuna" (Manifesto Comunista). Como era isso possível? Peja progressiva supressão de todos os privilégios no domínio do território: dias de trabalho gratuito, direito de vestuário, taxas sobre herança, direito do melhor catel (direito que tinham os senhores de, pela morte do vassalo, escolher o melhor dos móveis do defunto), imposto pessoal, obrigar ao casamento, direitos de sucessão, etc., cujo conjunto constituía precisamente a servidão.
Mas, dessa maneira, o pequeno~burguês da Idade Média, conseguia igualmente "sob o jugo do absolutismo feudal, elevar-se à categoria de burguês" (Manifesto Comunista). Por que meios? Pela abolição parcial e for- mal ou pelo afrouxamento efectivo dos elos corporativos, pela transformação progressiva da administração das finanças e do exército.
Se se considera o problema em absoluto e não numa perspectiva histórica, pode-se, pelo menos, imaginar no quadro das antigas relações de classe, uma via legal, reformista, de passagem da sociedade feudal à sociedade burguesa. Na realidade demonstra-se que aí não foram as reformas legais que tornaram inútil a tomada do poder político pela burguesia, pelo contrário, serviram para a preparar e para a introduzir. Em regra, foi necessária uma revolução política e social para abolir a servidão e para suprimir o feudalismo. Hoje a situação é outra. Nenhuma lei obriga o proletariado a submeter-se ao jugo do capital, é a miséria e a falta de meios de produção que o constrangem. Mas nenhuma lei do mundo pode dar-Ihe esses meios de produção no quadro da sociedade burguesa, porque não foi uma lei, mas o desenvolvimento económico que o desapossara desses meios de produção.
Igualmente a exploração no interior do sistema salarial não se baseou em nenhuma lei, porque o nível dos salários não foi fixado por via jurídica, dependendo dos factores económicos. O próprio facto de a exploração não ter tido por origem uma disposição legal, tem um fundamento puramente económico, a saber, a força do trabalho é equivalente à situação da mercadoria, e mesmo mais que o valor consumido pelo operário para a sua subsistência.
Numa palavra, é impossível transformar as relações fundamentais da sociedade capitalista, que são as da dominação de uma coisa por outra, com as reformas legais que respeitarão o seu fundamento burguês; essas relações não são produto de uma legislação burguesa, não se encontram traduzidas em leis. Bernstein aparentemente ignora-o, pois propõe uma "reforma socialista", mas reconhece-o implicitamente, quando escreve na pág. 10 do seu livro que o "motivo económico mascara hoje, tanto quanto antigamente era mascarada, toda a espécie de relações de dominação e de ideologia".
Isto não é tudo. O regime capitalista tem uma característica particular; todos os elementos da sociedade futura, ao progredirem, em vez de se orientarem para o socialismo, pelo contrário, afastam-se. A produção tem um carácter cada vez mais social. Mas que carácter social? Ganha a forma de grande empresa, da sociedade por acções, da concentração, no seio das quais os antagonismos capitalistas, a exploração, a opressão da força do trabalho, se exasperam em extremo.
No exército, a evolução do capitalismo conduz à extensão do serviço militar obrigatório, à redução em tempo desse, serviço; parece que se tende para um sistema de milícia popular. Mas essa evolução efectiva-se dentro do militarismo moderno; a dominação do povo pelo Estado militarista manifesta-se claramente, assim como a índole de classe do Estado.
No campo da política, a evolução do sistema conduz, se o terreno é favorável, à democracia, à participação de todas as camadas da população na vida política, orientando-se, de qualquer maneira, para um "Estado popular" mas, dentro da situação do parlamentarismo burguês, onde os antagonismos de classe, muito longe de se resolverem, aparecem à luz do dia. A evolução do capitalismo oscila entre as contradições. Para libertar o núcleo socialista da ganga capitalista, é preciso que o proletariado conquiste o poder político e que o sistema capitalista seja totalmente destruído.
Dessas constatações, Bernstein conclui coisas totalmente diferentes, se é verdade que a evolução do capitalismo deve exasperar e não atenuar as contradições capitalistas. Então, a "social-democracia deveria", acreditando nisso, "não tornar a sua tarefa mais difícil, travando o caminho às reformas sociais e impedindo a extensão das instituições democratas" (p. 71). O que seria correcto, se a social-democracia tivesse a preocupação pequeno-burguesa de escolher cuidadosamente os bons e os maus lados da história. Nesse caso, deveria, para ser consequente, "barrar o caminho", a todo o capitalismo porque é o terrível criminoso que põe obstáculos ao socialismo. De facto, o capitalismo, pondo obstáculos ao socialismo, oferece-lhe as únicas possibilidades de realizar o programa socialista. Isto é igualmente válido para a democracia. A democracia é talvez inútil ou menos inquietante para a burguesia actual. Para a classe operária é necessária, digamos mesmo indispensável.
É necessária porque criou as formas políticas (auto-administração, direito de voto, etc.) que servirão ao proletariado como trampolim e sustentáculo na sua luta pela transformação revolucionária da sociedade burguesa. Mas também é indispensável porque é lutando pela democracia e exercendo os seus direitos que o proletariado terá consciência dos seus interesses de, classe e das suas tarefas históricas.
Numa palavra, a democracia é indispensável, não porque torne inútil a conquista do poder político pelo proletariado; pelo contrário, torna necessária e simultâneamente possível a conquista desse poder. Quando Engels, no prefácio à Luta de Classes em França, revia a táctica do movimento operário moderno, opondo as barricadas à luta legal, não apontava – e cada linha do prefácio demonstra-o – ao problema da conquista do poder político, mas à luta quotidiana do momento. Não analisava a atitude do proletariado frente ao Estado capitalista no momento da conquista do poder, mas a sua atitude no interior do Estado capitalista. Em resumo, Engels dava directrizes ao proletariado oprimido e não ao proletariado vitorioso.
Em contrapartida, a célebre frase de Marx sobre a questão agrária em Inglaterra, de que Bernstein se serve como argumento – "regular-se-ia mais fàcilmente comprando os senhores da terra" – essa frase não se relaciona com a atitude do proletariado antes, mas depois da sua vitória. Porque só se pode falar em comprar as classes dominantes quando a classe operária está no poder. O que Marx encarava era o exercício pacífico da ditadura do proletariado e não a substituição da ditadura pelas reformas sociais capitalistas.
Marx e Engels nunca puseram em dúvida a necessidade da conquista do poder político pelo proletariado. Estava reservado para Bernstein considerar o pântano do parlamentarismo burguês como o instrumento chamado a realizar a transformação social mais formidável da história, quer dizer, a transformação das estruturas capitalistas em estruturas socialistas.
Expondo a sua teoria, Bernstein começa por exprimir simplesmente o receio de que o proletariado conquistasse excessivamente cedo o poder. Se isso acontecesse, uma tal acção, segundo Bernstein, conduziria a deixar a sociedade burguesa na situação em que está, e o proletariado sofreria uma terrível derrota. Esse receio mostra ao que se confina pràticamente, a teoria de Bernstein: a aconselhar o proletariado, no caso das circunstâncias o levarem ao poder, a ir-se deitar. Mas, mesmo aí, essa teoria julga-se a si própria, revela-se como uma doutrina condenando o proletariado, nos momentos decisivos da luta, à inacção, a uma traição passiva da sua própria causa.
Se o nosso programa não pode ser aplicável a todas as eventualidades ou a todos os momentos da luta, não passa de um mísero bocado de papel. Formulação global da evolução histórica do capitalismo, o nosso programa deve descrever, igualmente, nas suas linhas fundamentais, todas as fases transitórias dessa evolução e orientar em cada instante a atitude do proletariado na sua marcha para o socialismo. Pode-se concluir que não existe nenhuma circunstância em que o proletariado seja obrigado a abandonar o seu programa ou a ser abandonado por ele.
Concretamente isto quer dizer que não existe nenhum momento em que o proletariado, levado pelas circunstâncias ao poder, não possa, ou não esteja preparado para tomar certas medidas visando realizar o seu programa, medidas de transição para o socialismo. Afirmar que o programa socialista se pode revelar impotente numa fase qualquer da conquista do poder e incapaz de dar as directivas para a sua realização, é repetir a afirmação de que o programa socialista é, de um modo geral e sempre, irrealizável.
Mas se as medidas transitórias são prematuras?
Esta objecção revela uma série de mal-entendidos quanto à natureza real e ao desenrolar de uma revolução social. Primeiro mal-entendido: a conquista do poder político pelo proletariado, quer dizer, a grande classe popular, não se faz artificialmente. Excepto em casos excepcionais – como a Comuna de Paris, onde o proletariado não obteve o poder no fim de uma luta consciente, mas onde o poder lhe coube como herança que ninguém queria – a conquista do poder político implica uma situação política e económica que atingiu um determinado grau de maturidade. É esta a diferença básica entre os golpes de Estado, no estilo blanquista, levados a efeito por uma minoria actuante, desencadeados num momento qualquer e, de facto, sempre inoportunos, e a conquista do poder político pela grande massa popular consciente; uma tal conquista só pode ser o produto da decomposição da sociedade burguesa, contém em si própria a justificação económica e política da sua oportunidade.
Se se considerarem as condições sociais da conquista do poder, a revolução só se pode produzir prematuramente, só é prematura exclusivamente em função das consequências políticas quando se trata de conservar o poder.
A revolução prematura, espectro que povoa as noites de Bernstein, ameaçadora como a espada de Dâmocles, não pode ser esconjurada por nenhuma oração, nenhuma súplica, todas as angústias e transes são impotentes. E isso por duas razões muito simples.
Em primeiro lugar uma mutação tão formidável como a passagem da sociedade capitalista para sociedade socialista não se pode produzir de um salto, por um golpe feliz do proletariado. Imaginá-lo é fornecer mais uma
vez provas de concepções decididamente blanquistas. A revolução socialista implica uma luta longa, sustentada com obstinação no decorrer da qual e, muito provàvelmente, por mais de uma vez, o proletariado ficará em desvantagem. Se se olhar o resultado final da luta global, o seu primeiro ataque terá sido prematuro: teria chegado cedo de mais ao poder.
Ora – e este é o segundo ponto – essa conquista "prematura" do poder político é inevitável, porque esses ataques prematuros do proletariado são um factor, factor muito importante, da criação de condições políticas para a vitória definitiva; na realidade, é durante a crise política que acompanha a conquista do poder, durante longas e obstinadas lutas, que o proletariado adquirirá o grau de maturidade política que lhe permita obter a vitória definitiva da revolução. Assim esses assaltos "prematuros" do proletariado ao poder do Estado são, em si mesmos, factores históricos importantes, que contribuem para provocar e determinar o momento da vitória definitiva. Nessa perspectiva, a ideia de uma conquista "prematura" do poder político pelos trabalhadores é um contra-senso que deriva de uma concepção mecânica da evolução da sociedade; uma tal concepção pressupõe para a vitória da luta de classes um momento fixo fora e independentemente da luta de classes.
Ora já vimos que o proletariado não pode fazer outra coisa além de apoderar-se "prematuramente" do poder político, ou por outras palavras, só o pode conquistar uma ou várias vezes mais cedo para o conseguir conquistar definitivamente; por esse facto, opor-se a uma conquista "prematura" do poder, resulta no opor-se, em geral, à aspiração de conquista do poder do Estado, pelo proletariado.
Todos os caminhos levam a Roma: chegamos lògicamente, e mais uma vez, a esta conclusão: o conselho revisionista para se abandonar o objectivo final socialista é o abandono do movimento socialista no todo.