“Tive a mesma curiosidade na adolescência, ou até antes: desde sempre. Perguntei várias vezes à minha mãe por que o relógio e, depois de muitas evasivas, ela me pediu que repetisse a frase que eu pronunciava ao olhar para a lua cheia. Devia ter uns três anos quando apontava para o céu escuro e dizia “é a luz da noite”. Foi a explicação oblíqua que Emilie encontrou na minha infância para não falar de si. Anos depois, ao arrancar algumas palavras de Hindié Conceição é que a coisa ficou mais ou menos clara. Ela me contou uma passagem obscura da vida de Emilie. Minha mãe e os irmãos Emílio e Emir tinham ficado em Trípoli sob a tutela de parentes, enquanto Fadel e Samira, os meus avós, aventuravam-se em busca de uma terra que seria o Amazonas. Emilie não suportou a separação dos pais.
Na manhã da despedida, em Beirute, ela se desgarrou dos irmãos e confinou-se no convento de Ebrin, do qual sua mãe já lhe havia falado. Os irmãos andaram por todo o Monte Líbano à sua procura e, ao fim de duas semanas, escutaram um rumor de que a filha de Fadel ingressara no noviciado de Ebrin. Foi Emir quem armou o maior escândalo ao saber que sua irmã aspirava à
vida do claustro: ele irrompeu no convento sem a menor reverência ao ambiente austero, gritando o nome de Emilie e exigindo, com o dedo em riste, a sua presença na sala da Irmã Superiora; viu, enfim, a irmã entrar no recinto, toda vestida de branco e o rosto delimitado por
um plissado de organdi; essa visão, mais que a fuga, talvez o tenha levado a tomar a atitude que tomou: sacou do bolso um revólver e encostou o cano nas têmporas ameaçando suicidar-se caso
ela não abandonasse o convento. Emilie ajoelhou-se a seus pés e a Irmã Superiora intercedeu: que partisse com o irmão, Deus a receberia em qualquer lugar do mundo se a sua vocação fosse servir ao Senhor.Foi um golpe terrível na vida de Emilie. Ela concordou em deixar o convento naquele dia, mas suplicou que a deixassem rezar o resto da manhã e tocar ao meio-dia o sino anunciando o fim das orações. Foi a Vice-Superiora, Irmã Virginie Boulad, quem atribuiu à Emilie a tarefa de puxar doze vezes a corda do sino pendurado no teto do corredor contíguo ao claustro. Essa atribuição fora fruto do fascínio de Emilie por um relógio negro que maculava uma das paredes brancas da sala da Vice-Superiora. Ao entrar pela primeira vez nesse aposento, exatamente ao meio-dia, Emilie teria ficado boquiaberta e extática ao escutar o som das doze pancadas, antes
mesmo de ouvir a voz da religiosa. Hindié Conceição me repetiu várias vezes que a amiga cerrava os olhos ao evocar aquele momento diáfano da sua vida. Ela falava de um som grave e harmônico que parecia vir de algum lugar situado entre o céu e a terra para em seguida expandir-se na atmosfera como o calor da caridade que emana do Eterno e de seu Verbo. E comparava a sucessão de sons às mil vozes secretas das badaladas de um sino que acalmam as noites de agonia e despertam os fiéis para conduzi-los ao pé do altar, onde o arrependimento, a inocência e a infelicidade são evocadas através do silêncio e da meditação. Talvez por isso Emilie parava de viver cada vez que o eco quase imperceptível das badaladas da igreja dos
Remédios pairava e desmanchava-se como uma nuvem sobre o pátio onde ela polia os anjos de pedra após extrair-lhes o limo e os carunchos acumulados na temporada de chuvas torrenciais. Ela interrompia as atividades, deixava de dar ordens à Anastácia e passava a contemplar o céu, pensando encontrar entre as nuvens aplastadas contra o fundo azulado e brilhante a caixa negra com uma tampa de cristal, os números dourados em algarismos romanos, os ponteiros superpostos e o pêndulo metálico.Isso foi tudo o que Hindié me contou a respeito do relógio e da permanência de minha mãe no convento de Ebrin, há mais de meio século. Sem largar o cabo do narguilé, abanando-se com um leque descomunal feito de fios trançados e enfeitados com penas de pássaros, ela só parava de matraquear para tomar fôlego e enxugar o suor do rosto com a ponta da saia, sem se importunar em mostrar a folhagem de panos transparentes que separava a pele do algodão florido da túnica que nunca tirava. No entanto, esse gesto aparentemente despudorado, além de
parecer natural à Hindié, permitia criar uma intimidade quase familiar entre ela e as “crianças” da casa. Embora estivesse beirando os 18 anos, meu corpo franzino aliado ao meu temperamento tímido e recatado acentuavam ainda mais a diferença de idade que havia entre nós. Abanando-se com um movimento da mão que acabava contaminando o corpo todo, eu sentia no rosto a corrente intermitente de ar morno e fumaça, e seguia sua voz sem pestanejar, e quase sem chances de intrometer-me no fio sinuoso da conversa de que só ela participava. Na verdade, estava premida por uma vontade tão grande de falar, que num minuto de monólogo era capaz de mesclar o mau humor de ontem ao episódio ocorrido às vésperas de um natal remoto, quando ainda morávamos na Parisiense.

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Relatos de um certo oriente - Milton Hatoum
RandomApós um longo período de ausência, uma mulher regressa a Manaus, cidade de sua inf?ncia. Deseja encontrar Emilie, a extraordinária matriarca de uma família libanesa há muito radicada ali. Encontra a casa desfeita como desfeitas para sempre est?o as...