capítulo catorze,
garota em casa.
⊹ catherine ᵎᵎ
ultimamente tenho me pegado pensando em uma questão principal; em que momento certas coisas precisaram se tornar um sacrifício para que eu conseguisse alcançar os meus maiores objetivos?
eu, aos trinta e sete anos, pensava nisso a toda hora. não porque eu me arrependo das minhas escolhas pessoais, mas porque uma em específico martelava constantemente nas profundezas da minha mente, lembrando-me do que eu necessitei renunciar quando me vi vítima das minhas próprias inconsequências.
em minha defesa, eu era jovem. tinha todo um futuro pela frente. mas agora, eu só consigo repensar nas escolhas do meu eu de vinte e dois anos e, todos os dias, antes de dormir, a imagem do bebê ━━ o meu primeiro bebê ━━ vinha assombrar os meus pensamentos. o bebê que eu só consegui ninar por uma contagem limitada de minutos e que, amargamente, precisei me despedir logo depois.
essa cena ficava na minha cabeça em loop eterno, e eu sei que isso acontecia com o william também. no começo, tomamos a decisão de trancar esse assunto para sempre dentro de uma caixinha que ficou de escanteio por algum tempo. sabíamos que seria importante conversar sobre, mas nenhum de nós dois queria dar o primeiro passo para ter essa conversa dolorosa, então nós apenas fingíamos que nada tinha acontecido.
doce ilusão.
quando a nossa filha ━━ uma neném de quarenta e sete centímetros e olhos aparentemente azuis bem abertos ━━ chorou para nós pela primeira vez, uma sensação estranha nos abraçou. tinham sido nove meses completamente exaustivos com a ocultação da gravidez e o jogo de gato e rato com os paparazzi.
“você vai ficar bem” william sussurrava baixinho para ela, enquanto o choro da neném cessava aos poucos e os movimentos de sobe e desce que ele exercia faziam efeito. “não precisa chorar. todos nós vamos ficar bem.”
na ocasião, parei no tempo para apreciar aquela cena. soava muito estranho pensar daquela maneira, como se william possuísse algum direito sob o pequeno e indefeso ser que colocamos no mundo. ainda assim, senti meus olhos se encherem de lágrimas curtas ao me dar conta de que aquele rostinho inocente ━━ que dormia tão pacificamente no colo protetor do pai ━━ nunca mais alcançaria as nossas orbes novamente.
eu deveria saber que nunca mais é uma palavra muito forte.
pippa demonstrou, desde o início, estar muito feliz em ir até a minha filha e ter esse primeiro contato com ela. e deus, eu não poderia estar mais grata por tê-la como irmã, mas eu sentia como se uma parte de mim parasse de funcionar toda vez que meu celular apitava com uma notificação, e eu me via ávida por notícias de alguém que eu sabia que não estava mais sob a minha responsabilidade. alguém que dolorosamente não tinha mais vínculo comigo, embora a minha mente estivesse sempre me colocando em emboscadas, pensando na sua presença todos os dias e todas as noites.
meus pensamentos evaporaram quando cheguei na casa dos meus pais. assim que abri a porta, vi minha mãe sentada folheando uma revista forbes com a mais nova bilionária do momento na capa. torci o nariz com a cena.
── problemas de gente rica? ── perguntei irônica, percebendo que ela ainda não tinha notado a minha presença.
── ela é insuportável. ── mamãe riu, vindo até mim e me recebendo com um abraço caloroso. ── como você está, querida? e cadê o william? pensei que vocês viessem juntos.
── estou bem… um pouco nervosa, talvez. mas acho que tudo dentro da normalidade. ── suspirei, colocando minha bolsa no sofá. ── william estará aqui em uma hora.
senti os olhos de julgamento da minha mãe assim que caminhei até a adega da sala de estar, sentindo meus olhos brilharem assim que encontrei a coisa ━━ álcool ━━ pelo qual meu corpo clamava desesperadamente. minha mãe me observava atentamente, arregalando os olhos quando dei um gole generoso na bebida, deixando-a descer pela minha garganta como água.
── parece que alguém aqui também está com os próprios problemas de gente rica. você deveria estar bebendo, pra começo de conversa? ── dei de ombros. ── catherine! ── mamãe usou aquele tom de é-melhor-você-me-contar-o-que-está-acontecendo-agora-ou-vamos-ter-problemas. ── o que está havendo, querida?
mordi meus lábios para contar. é óbvio que meus pais sabiam de tudo o que tinha acontecido nos últimos meses, e é claro que eles estavam cientes e ansiosos pelo o que iria acontecer ━━ o tão esperado encontro ━━ daqui algumas horas na casa deles, mas eu não faço a menor ideia de como colocar para fora tudo o que eu sinto. quer dizer, minha mãe sempre soube de tudo. tudo mesmo. suspeito que entre todos, ela era a única que via cem por cento de mim nos primeiros anos depois que dei a luz pela primeira vez.
pouquíssimas pessoas sabem o que realmente aconteceu, e eu não posso contar nos dedos quantas vezes corri para o colo da minha mãe expressar a angústia que eu sentia em forma de lágrimas. e com a mesma paciência de sempre, cada vez que ouvia, a minha mãe dizia um calmo e tranquilo “não foi sua culpa, querida”, que quase, quase me convencia. só que nunca inteiramente.
me ajustei um pouco no sofá e comecei a contar. relatei sobre minhas inseguranças de qual rumo as coisas podem tomar agora que minha filha vai reaparecer nas nossas vidas, sobre o meu medo de não saber ser a mãe dela, e acima de tudo, o terror que eu sentia em não saber fazer uma boa ponte de ligação entre a bella e os irmãos.
── eu acho que é totalmente normal você ter esses receios, mas você não acha que tá depositando sua energia em algo que não pode ser esse bicho de sete cabeças que você pintou? ── mamãe disse serenamente e eu a olhei, levantando uma das minha sobrancelhas em sinal de desentendimento. ── quero dizer, as vezes a gente só tem que deixar a vida seguir seu percurso, kate.
── você já se perguntou como seria se william e eu tivéssemos ficado com ela? ── perguntei, num impulso, me arrependendo um pouco de como a suposição saiu da minha boca. ── quer dizer, é claro que eu adoro a vida que william e eu construímos, e… e eu não sei se teríamos isso caso a gente tivesse levado adiante essa coisa toda de sermos pais tão novos… ── cocei minha testa, temendo não saber me expressar direito. ── não quero parecer insatisfeita com a minha vida e com a minha família.
── sei exatamente o que você quer dizer. ── claro que ela sabia. ela sempre sabe. ── e entendo. eu também já pensei muito em como seria se todos nós tivéssemos que dar conta, especialmente naquela época, de uma criança correndo por aí.
segurei uma risada que, eu sabia, provavelmente se transformaria em lágrimas. a mera ideia de ter meus pais e meus irmãos ajudando william e eu com a nossa filha era um conforto. por mais que só fizesse parte da minha imaginação, e provavelmente se tornaria mais uma das coisas com as quais eu ficaria sonhando a noite, era bom pensar na vida como ela poderia ter sido.
── você tá bem? ── mamãe acariciou o meu braço.
── tô pensando.
── querida, preciso te dizer algo. ── minha mãe disse, depois de um curto período em que a minha frase ficou pairando pelas quatro paredes da sala. arregalei meus olhos para que ela soubesse que eu estava escutando, e me preparei para o que quer que ela estivesse prestes a me falar com tanta seriedade. ── agora que o assunto bella está tão claro entre nós, não posso evitar de me sentir culpada. não quero tornar isso sobre mim, essa é uma batalha sua e do william... ── mamãe continuou. ── mas quando você fala dela, eu percebo uma certa tristeza e é ai que eu sinto que errei porque… bem, quando a notícia de que você estava grávida chegou, foi um grande choque para todos nós. você ainda era uma menina começando a realizar os seus sonhos.
ela deu um suspiro baixo e prosseguiu:
── nós dois, tanto eu, quanto o seu pai, acabamos alimentando a ideia de que um bebê não era o que você queria para a sua vida com tanta crença, provavelmente porque… bem, estávamos sempre tão cercados desse monte de pessoas nos dizendo o que fazer, que não me dei conta de que esquecemos de perguntar para você e para o william o que vocês queriam. é claro, ninguém fez nada sem o consentimento de vocês, mas nunca foi uma pergunta de “o que vocês acham melhor?” ou então “o que é melhor para vocês agora?”. era sempre “isso é o melhor a se fazer, vocês não acham?” ou “temos que focar no futuro de vocês, certo?”. você entende o que eu quero dizer?
── sim. ── respondi, mas não sabia se era verdade. ── quero dizer, não sei.
a minha mãe suspirou novamente, mas eu tinha a consciência de que ela não se sentia cansada, nem nada do tipo, por me explicar. na verdade, era a situação toda que era exaustiva; exigia muito de todos nós. envolvia tantas vidas, e uma dessas em específico nunca quis fazer parte desse drama todo, o que era ainda pior.
── o que eu de fato estou dizendo, querida, é que essa situação inteira não diz respeito a terceiros, por mais que várias pessoas insistam em querer que você acredite no contrário. eu vejo o quanto você sofre até hoje com as consequências dessa escolha que fez no passado. e mesmo que a gente diga que o tempo cura tudo, eu não acho que isso se aplique a ter que dar adeus a um filho em vida. ── ela segurou as minhas duas mãos com força. ── você e o william precisam levar as coisas com calma. essa é uma história que se resume a vocês três, somente a vocês três! sendo assim, kate…
minha mãe fez uma pausa em suas palavras, e, naquele momento, ao ver um brilho diferente em seus olhos, fiquei me perguntando se não estávamos as duas chorando. sei que william e eu ficamos presos na dor que a ausência da nossa filha causava, mas percebi que nunca parei para analisar todo o impacto daqueles desenrolares na vida da minha mãe. no final das contas, deve ter sido muito difícil para ela também.
── bella ainda é sua e do william. e ninguém pode negar isso de vocês.
balancei a cabeça em afirmação, mas algo ainda me afligia.
── mas e a imprensa? agora que ela está voltando para as nossas vidas, tenho medo de toda a história cair na mídia. não quero nem pensar nas matérias tendenciosas e sensacionalistas que podem surgir, sujando o nome da minha filha.
── kate, meu amor, quando nós somos pais, a nossa maior ilusão é achar que podemos proteger os nossos filhos de todas as coisas ruins do mundo… você sabe disso, não sabe? ── concordei, sem desviar o meu olhar do seu. ── eu queria muito que isso fosse verdade, mas não é.
── mas, mamãe…
── mesmo que a imprensa fale alguma coisa em algum momento… a melhor forma de proteger a sua filha é ensinando-a que ela é muito mais do que o comentário de um tabloide.
recebi o conselho da minha mãe com uma sensação estranha percorrendo o meu peito. não sei dizer se eu estava me sentindo diferente de quando eu cheguei na casa dela, atordoada com os meus próprios pensamentos. comecei a repensar as minhas ações e analisar o quão errada eu estava em toda aquela história. era um assunto delicado, mas no qual ━━ ao contrário do que mamãe tinha tentado me convencer ao longo dos anos, talvez para que eu me sentisse melhor ━━ eu tinha, sim, uma parcela de culpa.
── kate! que bom ver você, querida. ── a voz alegre do meu pai me tirou do meu devaneio. ── olhe só quem eu encontrei no caminho. ── ele deu espaço, relevando a figura do meu marido, que sorriu ansioso ao me ver.
(…)
meu coração disparou, minha boca ficou seca e para me manter firme diante tudo o que estava acontecendo na minha frente, apertei dois dedos do william com força, que correspondeu a minha atitude ━━ um tanto quanto agressiva ━━ com um gemido baixinho de dor.
ainda com os olhos fixos nela ━━ que parecia se movimentar em câmera lenta ━━ vi meus pais a cumprimentar sorrindo. observei com cautela a imagem da minha filha, ela me passou a impressão de alguém que gostaria de passar despercebida dos olhos que claramente a observavam atentamente ali.
eu teria corrido até lá e tirado ela do meio deles se minhas pernas não estivessem petrificadas.
apertei mais ainda os dedos do meu marido quando ela foi se aproximando de nós dois. william e eu rapidamente nos levantamos, ficando cara a cara com aqueles olhos verdes e redondos que nos olhava com apreensão e curiosidade. a minha primeira e única reação foi puxa-lá para um abraço apertado, o responsável por fazer a minha fortaleza desmoronar.
e ali, uma dúvida impregnou-se na minha cabeça; como nós fomos capazes de viver tanto tempo longe dela?
🌷| o último, nenens! espero q vcs tenham gostado e obrigada por todas as interações desde o comecinho 🩷 até qualquer dia