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Relatos de um certo oriente...

By livrosvestibular

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Após um longo período de ausência, uma mulher regressa a Manaus, cidade de sua infância. Deseja encontrar Emi... More

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“Tive a mesma curiosidade na adolescência, ou até antes: desde sempre. Perguntei várias vezes à minha mãe por que o relógio e, depois de muitas evasivas, ela me pediu que repetisse a frase que eu pronunciava ao olhar para a lua cheia. Devia ter uns três anos quando apontava para o céu escuro e dizia “é a luz da noite”. Foi a explicação oblíqua que Emilie encontrou na minha infância para não falar de si. Anos depois, ao arrancar algumas palavras de Hindié Conceição é que a coisa ficou mais ou menos clara. Ela me contou uma passagem obscura da vida de Emilie. Minha mãe e os irmãos Emílio e Emir tinham ficado em Trípoli sob a tutela de parentes, enquanto Fadel e Samira, os meus avós, aventuravam-se em busca de uma terra que seria o Amazonas. Emilie não suportou a separação dos pais.

Na manhã da despedida, em Beirute, ela se desgarrou dos irmãos e confinou-se no convento de Ebrin, do qual sua mãe já lhe havia falado. Os irmãos andaram por todo o Monte Líbano à sua procura e, ao fim de duas semanas, escutaram um rumor de que a filha de Fadel ingressara no noviciado de Ebrin. Foi Emir quem armou o maior escândalo ao saber que sua irmã aspirava à
vida do claustro: ele irrompeu no convento sem a menor reverência ao ambiente austero, gritando o nome de Emilie e exigindo, com o dedo em riste, a sua presença na sala da Irmã Superiora; viu, enfim, a irmã entrar no recinto, toda vestida de branco e o rosto delimitado por
um plissado de organdi; essa visão, mais que a fuga, talvez o tenha levado a tomar a atitude que tomou: sacou do bolso um revólver e encostou o cano nas têmporas ameaçando suicidar-se caso
ela não abandonasse o convento. Emilie ajoelhou-se a seus pés e a Irmã Superiora intercedeu: que partisse com o irmão, Deus a receberia em qualquer lugar do mundo se a sua vocação fosse servir ao Senhor.

Foi um golpe terrível na vida de Emilie. Ela concordou em deixar o convento naquele dia, mas suplicou que a deixassem rezar o resto da manhã e tocar ao meio-dia o sino anunciando o fim das orações. Foi a Vice-Superiora, Irmã Virginie Boulad, quem atribuiu à Emilie a tarefa de puxar doze vezes a corda do sino pendurado no teto do corredor contíguo ao claustro. Essa atribuição fora fruto do fascínio de Emilie por um relógio negro que maculava uma das paredes brancas da sala da Vice-Superiora. Ao entrar pela primeira vez nesse aposento, exatamente ao meio-dia, Emilie teria ficado boquiaberta e extática ao escutar o som das doze pancadas, antes
mesmo de ouvir a voz da religiosa. Hindié Conceição me repetiu várias vezes que a amiga cerrava os olhos ao evocar aquele momento diáfano da sua vida. Ela falava de um som grave e harmônico que parecia vir de algum lugar situado entre o céu e a terra para em seguida expandir-se na atmosfera como o calor da caridade que emana do Eterno e de seu Verbo. E comparava a sucessão de sons às mil vozes secretas das badaladas de um sino que acalmam as noites de agonia e despertam os fiéis para conduzi-los ao pé do altar, onde o arrependimento, a inocência e a infelicidade são evocadas através do silêncio e da meditação. Talvez por isso Emilie parava de viver cada vez que o eco quase imperceptível das badaladas da igreja dos
Remédios pairava e desmanchava-se como uma nuvem sobre o pátio onde ela polia os anjos de pedra após extrair-lhes o limo e os carunchos acumulados na temporada de chuvas torrenciais. Ela interrompia as atividades, deixava de dar ordens à Anastácia e passava a contemplar o céu, pensando encontrar entre as nuvens aplastadas contra o fundo azulado e brilhante a caixa negra com uma tampa de cristal, os números dourados em algarismos romanos, os ponteiros superpostos e o pêndulo metálico.

Isso foi tudo o que Hindié me contou a respeito do relógio e da permanência de minha mãe no convento de Ebrin, há mais de meio século. Sem largar o cabo do narguilé, abanando-se com um leque descomunal feito de fios trançados e enfeitados com penas de pássaros, ela só parava de matraquear para tomar fôlego e enxugar o suor do rosto com a ponta da saia, sem se importunar em mostrar a folhagem de panos transparentes que separava a pele do algodão florido da túnica que nunca tirava. No entanto, esse gesto aparentemente despudorado, além de
parecer natural à Hindié, permitia criar uma intimidade quase familiar entre ela e as “crianças” da casa. Embora estivesse beirando os 18 anos, meu corpo franzino aliado ao meu temperamento tímido e recatado acentuavam ainda mais a diferença de idade que havia entre nós. Abanando-se com um movimento da mão que acabava contaminando o corpo todo, eu sentia no rosto a corrente intermitente de ar morno e fumaça, e seguia sua voz sem pestanejar, e quase sem chances de intrometer-me no fio sinuoso da conversa de que só ela participava. Na verdade, estava premida por uma vontade tão grande de falar, que num minuto de monólogo era capaz de mesclar o mau humor de ontem ao episódio ocorrido às vésperas de um natal remoto, quando ainda morávamos na Parisiense.

Todos se reuniam na copa do casarão rosado, com a exceção de meu pai, que se ilhava no quarto ou ia passear na Cidade Flutuante, onde ele entrava nas palafitas para conversar com os compadres conhecidos, com os caboclos recém-chegados do interior, e depois caminhava até o porto para visitar armazéns e navios.

Antes do amanhecer Emilie me acordava para colhermos as flores do jardim; depois
tirávamos Samara da rede e íamos de bonde ao bairro dos franceses para comprar buquês de jasmim-porcelana e cansarinas róseas. Com linha amarela e agulha de madeira fazíamos colares e adornos para serem oferecidos aos convivas, e em cada taça de porcelana Emilie arrumava uma pétala branca e espalhava jasmins-do-mato no assoalho da alcova. As mulheres da vizinhança ajudavam na cozinha, preparando e esticando a massa dos pastéis e folheados. Eram finos lençóis de trigo estendidos por toda a casa, panos translúcidos que formavam cavernas de sombra onde brincávamos de adivinhar a silhueta do outro ou de colar o rosto nas
superfícies que se moldavam à pele ou cobriam a cabeça como uma máscara ou um capuz. Tio Emílio fazia as compras, matava e destrinchava os carneiros, torcia o pescoço das aves e passava-lhes a lâmina no gogó para que o sangue esguichasse com abundância, como exigia meu pai. Só uma vez é que utilizaram outra prática para matar os animais. Consistia em embriagar as aves e torcer-lhes o pescoço para que vissem o mundo já embaçado girar como um pião. As aves morriam lentamente, ébrias, os olhos dois pontos de brasa e o pescoço mulambento como um barbante. “Esse martírio só pode ser obra de cristão”, proferia meu pai, sabendo que Hindié já fizera isso em outras casas e que era uma prática bastante difundida na cidade. Na véspera daquele natal, Hindié apareceu em casa com um garrafão de cachaça e ela mesma embebedou os doze frangos e quatro perus, enrolou um fio de tucum no pescoço de cada ave e convocou a vizinhança para assistir ao holocausto. Nunca me saiu da cabeça a visão das aves saltitando em círculo com os cangotes bambos, sufocadas pelo movimento de cada salto que estrangulava a vizinha. Hindié batia palmas e gargalhava, despreocupada em mostrar a gengiva crivada, e indiferente às nuvens de moscas que empastavam as mechas de cabelo que caíam até o meio das costas.

Naquela tarde presenciei tudo de longe, com curiosidade e um certo receio. Hindié tratava qualquer criança como se fosse seu filho, despejando uma enxurrada de beijos, abraços e palavras carinhosas nas pequenas vítimas que moravam nos arredores de sua casa. Mas essa entrega parecia a manifestação de um sadismo requintado, pois o carinho exagerado que recebíamos de uma mulher como Hindié, dava-nos uma incômoda sensação física, sem a transcendência e a naturalidade do gesto materno, que, para ser caloroso e sensual, não necessita de excessos nem de grandes encenações. Talvez por isso, quando criança, eu me sentia sufocado e acuado na presença de Hindié, não tanto pela feiura e desleixo do seu corpo, e sim pela maneira que me seguia, ou melhor, me perseguia, com os dois braços abertos e agitados, que para o tamanho de uma criança pareciam um par de tentáculos, enormes e ameaçadores. Ela
anunciava a sua visita batendo palmas estrondosas, gritando Emilie com uma voz pastosa que vinha da gengiva e ecoava nos aposentos da Parisiense. Eu e Samara saíamos em disparada rumo ao lugar mais recôndito da casa, onde permanecíamos encasulados numa rede, escutando as vibrações de um vozeirão a rondar o nosso esconderijo. Mas havia algo mais forte e repulsivo no corpo dela: o cheiro, o odor de azedume que flutuava ao redor daquela mulher como uma aura de fétidos perfumes. Na infância há odores inesquecíveis. Durante esses anos de ausência, não sei se seria capaz de recompor na memória o corpo inteiro de Hindié, mas o bafo que se despregava dela, mesmo à distância, me perseguiu como a golfada de um vento eterno vindo de muito longe. Meu pai dizia que era um cheiro mais enjoativo que o do gato maracajá. Com uma ponta de ironia, ele me segredava: se esta mulher entrar no mato, jaguatirica no cio vai lamber as pernas dela. O fato é que desde aquele natal meu pai e Hindié se estranharam. Até hoje não sei como ele descobriu que as galinhas e os perus tinham ingerido cachaça antes de serem estrangulados. Hindié, que também era inclemente com ele, me disse durante a conversa:

— Teu pai tem o olfato mais aguçado que um cão. Sentiu o cheiro da aguardente lá no quintal, onde o aroma do jasmim branco é muito forte.

Ao vê-lo entrar, altivo mas com o rosto sisudo, sem cumprimentar ninguém, desconfiamos que aquela noite, normalmente propensa à festa e à comilança, estava ameaçada por um fio
frágil e tenso que bem podia romper-se na culminância de risos, brincadeiras, galanteios, danças e elogios à culinária exuberante e à decoração da sala: um cenário colorido e cambiante como um caleidoscópio.

Num dos cantos da sala o pinheiro que imitava o cedro estava repleto de penduricalhos e caixas transparentes com presentes embrulhados em papel de seda; nas prateleiras das vitrinas e cristaleiras havia bandejas de doces, bombons, frutas secas e vários tipos de tortas de frutas da
região. O teto da sala estava coberto de balões furta-cores, e por toda a casa se espalhavam bolas de sumaúma enroladas em papel crepom, que encerravam caixinhas com caramelos e chocolates recheados de castanha. Eram tantos objetos coloridos que reluziam dentro e fora das
vitrinas que a festa de natal lembrava os preparativos carnavalescos; só faltavam as máscaras e fantasias para a ceia religiosa tornar-se uma festa pagã.

Antes de meia-noite, a vitrola tocava canções portuguesas e orientais ritmadas com palmas, e os vizinhos estrangeiros, vestidos a caráter, vinham cumprimentar Emilie e assistir às filhas de Mentaha dançarem após a ceia. Teria sido uma noite desastrosa, não fosse por Emilie e uma visita inesperada. Meu pai permaneceu no quarto durante o crepúsculo e uma parte da noite; todos sentimos que no silêncio do homem que se confinara havia uma revolta calada que extravasava a circunspecção. Emilie continuou absorvida por afazeres diversos, embora soubesse que as pessoas ao seu redor se moviam com preocupação, pressentindo transtorno iminente.

— Aconselhei tua mãe a ir falar com ele, mas ela não é de adular ninguém — disse Hindié. — Pergunta o que tinha contrariado o marido dela.

— Deve ser uma das proibições do Livro — ironizou Emilie —, mas hoje quem dita o que pode e não pode sou eu, não um analfabeto guerreiro que se diz Profeta e Iluminado.

A casa já fervilhava de gente quando ouvimos os passos no assoalho e o estalido seco de uma porta fechada com violência. Todas as vozes calaram, mas uma mão previdente aumentou o som da vitrola; mesmo assim, ninguém, salvo Emilie, conservou um ar de espontaneidade nos
gestos, porque ali todos estavam petrificados, como num retrato de família. Ele atravessou as duas salas e o espaço da loja com a mesma altivez e cumprimentou com a cabeça as pessoas que não enxergava. Os que pensaram estender-lhe a mão aliviaram-se porque carregava uma
trouxa de tralhas como se fosse atravessar um deserto. Levava o narguilé com incrustações de madre pérola, um pote de vidro com sementes secas de jerimum, um embrulho com pão e zatar, e o rádio Philco holandês, oito faixas, que captava as ondas do ocidente e oriente, sintonizando estações do Cairo e de Beirute que o colocavam a par das últimas notícias, transmitiam programas musicais e a voz possante de um muezzin que eu ouvi, anos depois, na gravação que
ele me dera de presente. Todos estavam cabisbaixos, e até nossa vizinha, tia Arminda (minhota risonha que enfrentava os momentos mais difíceis da vida com um sorriso eterno que dividia o seu rosto), fechou a cara, escondendo os dentes graúdos e salientes. Eu estava bem juntinho de Samara e apertava sua mão molhada, mas acho que nós dois suávamos frio. Hindié recordou que meu pai seria capaz de fulminá-la com um olhar, mas não olhou para ninguém enquanto caminhava. Antes que ele desaparecesse sozinho na noite, Emilie começou a bater palmas, a tagarelar, e me separou de Samara para dançar comigo, e então dançamos e rimos sem a
sombra do meu pai na casa iluminada. E, como um retrato que se anima ou um grupo de esculturas que se move, as outras pessoas nos acompanharam na dança e Arminda tornou a sorrir enquanto Hindié arrumava o vaso de jasmim na mesa e tirava do forno os folheados e as esfihas.

— Indiquei o lugar de cada um na mesa, sem saber se alguém ia assistir à missa do galo — continuou Hindié, fumando com ansiedade, tragando e arfando ao mesmo tempo, e a mão que segurava o leque tremelicava como as asas de um beija-flor.

Minha mãe interrompeu a dança e me acompanhou à mesa, insistindo para que as visitas ficassem para a ceia. Muitas ficaram. Sem a menor cerimônia, com o gesto mais natural do mundo, ela me colocou na cabeceira, o lugar cativo do meu pai, e avisou a todos que ia trocar a blusa empapada de suor e voltava num minuto. A sua ausência foi breve, mas, ao reaparecer na sala, a pele do seu rosto já não lembrava o marfim banhado de luz, de afago excessivo, sem limite. As pessoas começaram a cochichar e Hindié foi ao encontro da amiga, para tentar evitar o embaraço.

— Diz que sentiu umas pontadas na cabeça quando entrou no quarto — disse Hindié, ressabiada. — Tua mãe queria desconversar, pois logo se afastou de mim para servir suco de frutas à criançada, e se alguém elogiava um prato ela ditava a receita com uma voz atrapalhada não te lembras?

Lembro que ela não saiu de perto de mim enquanto eu comia a contragosto. Ela dava a comida na boca de Samara, vigiava meu apetite, beliscava um salgadinho, sem deixar de perguntar à Arminda se tinha notícias dos parentes portugueses, e à dona Sara Benemou quando a sinagoga seria inaugurada e se em Rabat conheciam o tabule e a esfiha com picadinho de carneiro, e a todos os convivas, com um olhar aceso e abrangente, se já sabiam que Dorner estava de volta à cidade.

— Há uns seis ou sete anos morou em Manaus — disse Emilie. — Depois fez uma longa viagem pela selva e andou pelo sul revendo uns parentes.

— Naquele tempo eras solteira — observou Esmeralda.

— Solteira, feliz e infeliz — acrescentou Emilie, procurando com os olhos uma moldura oval na parede branca da sala. — Esse alemão conhecia meu marido e era amigo do Emirzinho.

Emilie ofegava, e sua voz nervosa e trêmula atraiu o interesse de todos pela conversa. Mas ao silêncio que se seguiu, todos olharam para a moldura oval que enquadrava a fotografia de um homem jovem cujo olhar arregalado e sem rumo obrigava o observador a desviar os olhos da moldura e procurar em vão outro objeto fixado na parede da sala, pois na superfície branca não havia nada além da fotografia.

— Outro dia encontrei Dorner na porta do Café Polar — disfarçou Esmeralda. — Fazia festa com os amigos que deixou aqui, e queria saber se conheciam algum nubente ou o aniversariante da semana. Parece que desta vez veio para ficar.

Arminda o considerava generoso e douto, mas cheio de manias, pois colecionava tudo e se interessava por tudo, que nem o Comendador. Além disso, adorava fazer surpresas. Ela remexeu na bolsa, tirou uma fotografia, e então vimos o seu rosto sorridente, pálido e meio assustado no vão da janela, entre vasos com hortênsias.

— Ele me pegou de supetão — disse Arminda, segurando a fotografia.

Emilie se arrependeu de não o ter convidado: o coitado não tinha família aqui, e ia passar o natal sozinho. Mal terminara de dizer que os estrangeiros são sempre bem-vindos, ouvimos as palmas, o boa-noite e o feliz-natal para todos. As crianças riram ao divisarem a figura alta avançar com passos desajeitados entre as vitrinas e se aproximar da sala sem a menor cerimônia. No rosto despelado havia manchas vermelhas, e no punho da mão esquerda
enroscava-se a alça de uma caixa que ele segurava com a firmeza e a avidez de um gavião que agarra uma presa. “Tão cedo não morres”, exclamou Arminda com um sotaque perfeito do Minho. O visitante cumprimentou um por um, curvando o corpo para beijar a mão das mulheres
e espanando com os dedos os cabelos das crianças. Acercando-se de Arminda, colocou junto ao rosto dela a fotografia que ela ainda segurava, desenrolou a alça do punho e com um gesto felino retirou da caixa o flash e a câmara. Ouvimos o disparo e logo mergulhamos na cegueira estonteante do lampejo que esbranqueceu tudo ao nosso redor. Quando as pessoas e os objetos reapareceram, as duas Armindas ainda sorriam, impávidas e assustadas. Na semana seguinte, o rapaz mostrou a fotografia do rosto da mulher ao lado da fotografia do rosto da mulher, e então dissipamos uma dúvida antiga: a de que aquele sorriso não era um sorriso e sim um cacoete adquirido na infância, como revelara nossa vizinha Esmeralda à Hindié Conceição.

Não apenas a família poveira, mas todos os vizinhos quiseram saber o que acontecera na noite de natal. Já desconfiavam que meu pai não tinha dormido em casa e continuava sumido sem ter deixado vestígio. A visita inesperada do fotógrafo no meio da noite serviu de consolo à Emilie e evitou um constrangimento maior.

— Sem essa distração — observou Hindié —, tua mãe não teria parado de falar e comer,
sempre grudada em ti, expelindo palavras e devorando alimentos para não esmorecer e
desmoronar de uma vez, como ocorreu na manhã seguinte. Fui bem cedinho na Parisiense e encontrei o mesmo rebuliço da véspera.

Um batalhão de formigas de fogo, atraído pelo mel dos folheados, dos farelos e das
migalhas, invadira as vitrinas; na mesa e nos pratos espalhava-se uma mixórdia de ossos, caroços e cascas de frutas, e nas travessas de porcelana cresciam chumaços de moscas. A paisagem campestre bordada na toalha (um caçador à beira de um córrego procurando um pássaro de branca plumagem e um pavão cuja cauda em leque filtrava a luz solar) estava manchada de nódoas de gordura e respingos de diferentes bebidas. Por ser o único dia de folga de Anastácia,
que saía de manhãzinha para visitar uns parentes e só retornava à noitinha, era Emilie que se empenhava na arrumação e limpeza, para que no fim da tarde a Parisiense voltasse a ser moradia e loja, e não um espaço caótico que confunde tanto o freguês quanto o visitante.

— Anastácia estava de saída e não quis me dizer por que a casa estava uma balbúrdia —
disse Hindié. — Me confidenciou que em plena madrugada a patroa andava meio atarantada pela casa, às vezes parava diante da porta do quarto das crianças e depois de passar um tempo provocando no banheiro, pediu cola, palito e tesoura à empregada.

Estava com as mãos bambas e com o rosto inchado, e antes de se trancar no quarto soprou uma palavrinha no ouvido de Anastácia. Insisti e até implorei para ela me contar o recado de Emilie, mas sabes o que me respondeu? “Nem morta, comadre. A patroa disse que era segredo.” Depois me olhou com um ar de abnegação e responsabilidade e concluiu: “Já vou indo porque as horas voam. A senhora pode entrar no quarto, dona Emilie já está de pé”. Na verdade, tua mãe não tinha dormido: estava sentada no chão, e logo que me viu deu uma palmadinha no tapete e disse com uma voz rouca: “Levei as crianças para a casa de Esmeralda, onde vão passar o dia.
Agora senta e trata de me ajudar, pois trabalho não falta”. O quarto estava um pandemônio... — lamentou Hindié.

Ela parou de falar, escondeu o rosto com o leque e recostou-se na cadeira. Permaneceu calada por um momento: para reavivar a memória? Tomar fôlego? Amainar o rancor que lhe trazia a lembrança daquele dia? E, sem afastar o leque do rosto, passou a enumerar com uma voz carregada de ira e vexame os santos de gesso pulverizados, os de madeira quebrados barbaramente, a Nossa Senhora da Conceição espatifada e o Menino Jesus destroçado. Mas as iluminuras raras e preciosas que Emilie adquirira na península ibérica foram poupadas, bem como o oratório de caoba e a imagem de Nossa Senhora do Líbano; ambos continuavam intactos, alheios à fúria do meu pai durante o crepúsculo e uma parte da noite. O quarto parecia ter sido assolado por um cataclisma, um furacão ou um único grito vindo do Todo Poderoso. Hindié revelou novamente o rosto e me olhou como se eu fosse um eco, uma reverberação do descontrole paterno, como se o tempo tivesse dado uma guinada para trás e naquele instante ela estivesse compartilhando as lamúrias com Emilie e eu andasse sumido após ter profanado o espaço do quarto. Entretanto, eu não abrira a boca, apenas ruminava. A minha reação ao que ela me contava repousava no meu rosto e no meu olhar, que expressavam surpresa, interesse, dor ou comiseração. Por que ela falava tanto nisso? Não para acusar meu pai, o destruidor das relíquias que nutriam o dia a dia das duas amigas, e sim para redimir-se da atitude expiatória que desafiara a palavra do Profeta. Imaginei-as sentadas no tapete cujo desenho lembra o da Porta do Sepulcro, com suas rosáceas e hélices, com seus círculos, quadrados e triângulos, e um
delicado motivo floral, geométrico, dentro de um hexágono inscrito num círculo. Elas não sabiam (talvez só meu pai soubesse) que naquele tapete onde catavam fragmentos de gesso e estilhaços de madeira para reconstruir as estátuas dos santos, a geometria dos desenhos simbolizava a criação, o sol e a lua, a progressão cósmica no tempo e no espaço, o ciclo das revoluções do tempo terrestre, e a eternidade. E que bem no centro do tapete, num meio círculo desbotado pelo contato assíduo de um corpo agachado para orar, havia uma caixa ou um cofre que encerra o Livro da Revelação, representado por um pequeno quadrado amarelo.

Enquanto Hindié contava como as duas colavam lascas e retocavam com pigmentos de caroços e cascas de frutas a manta e as mechas de cabelos das estatuetas, e catavam com olhos de lince as lascas de gesso espalhadas no tapete, eu pensava, com um riso contido, no que acontecera nos dias que sucederam aquela noite natalina. Até então, a religião não causara graves desavenças entre meus pais. Ele encarava com naturalidade e compreensão o fervor religioso de Emilie. Tolerava as festas cristãs, mas se alheava com um desdém perfeito das preces elaboradas por Emilie, fazia vista grossa às imagens e estátuas de santos, e afastava-se do quartinho de costura onde as duas mulheres cortavam e picotavam retângulos de papel vegetal para confeccionar santinhos coloridos que seriam doados às órfãs internas do colégio Nossa Senhora Auxiliadora durante a primeira comunhão. O dia todo foi dedicado à restauração dos objetos sagrados. No fim da tarde, as estatuetas com manchas de tinta e marcas de fissura voltaram aos pedestais de madeira e aos nichos.

— Já estava exausta — prosseguiu Hindié —, mas tua mãe, como alguém que vive um momento de cegueira ou embriaguez, ainda teve força para arrumar a sala, fumigar as vitrinas e as partes úmidas da casa, e fazer um arranjo de flores para enfeitar uma mesinha coberta por uma toalha verde. Fez quase tudo sozinha e na hora em que Esmeralda trouxe vocês dois eu já não me aguentava em pé: cambaleava, tonta de dor de cabeça por ter forçado a vista e passado
quase dez horas sentada no chão.

Me despedi de Emilie, e lá fora reconheci de longe o andar do teu pai. Levava debaixo do braço o rádio e o narguilé; atrás dele vinha Anastácia carregando a trouxa e os embrulhos. A empregada se encontrou casualmente com ele? Teus pais brigaram durante a noite? Não soube o que aconteceu, pois Emilie não me contou nada e tampouco insisti em tocar no assunto. Mas no natal do ano seguinte, com muita discrição tua mãe pediu para que eu deixasse a matança das aves aos cuidados do teu tio Emílio, esse anjo acautelado que ao pressentir o desastre se ausentou da comemoração natalina.

Hindié nunca soube que Anastácia servira de mediadora na desavença entre meus pais, ou que Emilie a incumbira de encontrar a todo custo o marido e trazê-lo de volta antes do jantar. Durante o tormento da madrugada ela não esquecera de separar para ele uma travessa de comida e uma bandeja de doces, frutas secas e uma cumbuca cheia de compota de goiaba. Ela cochichava à empregada que o rancor de um homem apaixonado se amaina com carinho e quitutes.

— São duas armas poderosas para acalmar o gênio de cão do meu marido — sentenciava. Soube depois que Anastácia passara o dia em busca do meu pai, até encontrá-lo na Cidade Flutuante, conversando com amigos do interior. Dormira na casa de um compadre que conheceu no rio Purus: uma palafita pintada de rosa e verde, cercada por latas de querosene entulhadas de tajás, açucenas e flores do mato. Estava sentado no meio de uma roda de homens curiosos para ouvir no rádio a voz estranha de uma canção que causava um estardalhaço de risos.

— Quando me viu ficou logo de pé e perguntou por tua mãe — me disse Anastácia.

— E o que respondeste?

— Que desde ontem ela estava esperando ele para o jantar; que o tapete do quarto brilhava como o sol da manhã.

Os dois entraram juntos na Parisiense. Anastácia caminhou depressa para a cozinha, mas Emilie interpelou-a e ordenou:

— Leve o jantar das crianças ao quarto.

A frase nos advertiu que o resto da noite passaríamos no aposento onde dormíamos. Samara não se desgrudava de mim, e olhou de esguelha para meu pai, que contornou as vitrinas e passou como um desconhecido a poucos metros da porta do nosso quarto. Mesmo assim, demos boa- noite ao mesmo tempo, com uma voz mirrada que mal saiu da nossa boca. Emilie respondeu beijando nossos olhos. Estava perfumada como nunca, e ao afagar meus cabelos notei que usava o anel de safira, tão comentado nas conversas sobre as joias do Oriente; os cabelos, presos na nuca por um coque, deixavam reluzir a testa lisa e amendoada, que recendia a âmbar. Lembro que não consegui comer a sobra da ceia natalina, e durante boa parte da noite vigiei com as orelhas em pé os movimentos do outro lado da parede. Temia que meu pai, transformado num Antar feroz e indomável, agredisse a mulher que me beijara, que me beijaria todas as noites, no instante que precede o sono. Foi uma noite tensa e longuíssima. Esperava a qualquer momento um revide, algum tipo de vingança, um ruído arrasador de quem demole um muro espesso e sólido. Adormeci com essa sensação incômoda, a minha mão entrelaçada na de Samara, que sempre se deitava com um laçarote de renda preso aos cabelos.

Na manhã seguinte, ao passar pela loja, antes de sair para a escola, reparei que meu pai guardava sigilosamente duas estátuas de santo no armário das grinaldas para noivas. Naquele momento, não liguei coisa com coisa e até pensei que ele fizera isso a pedido de Emilie, para evitar os fungos e o cupim que nos meses de chuva corroem os objetos de madeira e mudam a cor do gesso. De volta da escola, ao meio-dia, a casa estava de cabeça para o ar, e todos se empenhavam na busca das estátuas. Havia um regozijo no rosto do meu pai ao notar a aflição de Emilie, sua fisionomia incontida, e a voz gralhada seguida de punhadas na mesa e nas paredes. Espremia os lábios, bufava sem parar de vociferar, perguntava à Anastácia se algum estranho havia entrado no quarto ou se por acaso ela não levara os santos para limpar. Esperei a hora da sesta para revelar à minha mãe o altar profano das estátuas. Ela quase não acreditou no que viu. Além de cobrir-me de beijos, decidiu regalar-me uma mesada de vinte réis, para que eu pudesse comprar cones de cascalho e outras guloseimas da rua. No outro dia o episódio se repetiu, e assim durante uma semana: de manhã, quando Emilie ia ao mercado, meu pai apoderava-se dos santos e antes do fim da tarde eu os devolvia à minha mãe, que acabou aceitando a brincadeira com humor, mas sem deixar de maquinar um revide. Ela esperou com paciência o mês de junho, e na manhã do vigésimo sétimo dia as portas da Parisiense foram trancadas com ferrolho e cadeado. A casa e a loja se tornaram um cárcere sem luz onde meu pai procurava encontrar às cegas os quatro anjos da Glorificação e as vinte e oito casas lunares onde habitam o alfabeto e o homem na sua plenitude. Embora tivesse trancado a casa toda, isolando-a do mundo, ele não fez o escândalo esperado, nem exortou ninguém a procurar o objeto extraviado. Na verdade, só ele e Anastácia estavam ilhados, porque eu e Samara tínhamos ido à escola; minha mãe, ao voltar do mercado, deparara com as portas trancafiadas e em vão martelava a mãozinha de ferro que servia de aldraba. Logo que me viu, boquiaberto e passivo diante da fachada cega, me enlaçou com os braços e disse com um sorriso de triunfo:

— Esses dias de jejum deixam teu pai desmiolado, querido.

Sem entender a frase, imaginava que alguma coisa estranha ocorria na Parisiense. Para mim, aquela sexta-feira era como outra qualquer, não havia motivos para ficarmos fora da casa, diante de cinco portas lacradas, vendo minha mãe risonha estalar a mãozinha de ferro contra a madeira maciça. Ela nos conduziu à calçada sombreada por uma castanheira, abriu um açafate de palha e ofereceu-nos frutas. Da minha sacola retirou um caderno e um lápis, e começou a escrever, movendo vagarosamente a mão no sentido do percurso solar, semeando entre as pautas negras uma caligrafia dançante, enigmática como os hieróglifos. Escreveu três linhas, arrancou a folha do caderno, dobrou-a e pediu para que eu a enfiasse debaixo da porta. Poucos minutos depois, no vão da porta central que se abriu, apareceu Anastácia Socorro negaceando com a cabeça e fazendo círculos com o indicador junto à orelha direita; o polegar da outra mão apontava para o interior da Parisiense, e esses dois movimentos sincrônicos de um corpo franzino emoldurado pelo vão escuro da porta nos deram um acesso de riso que só cessou quando imergimos na escuridão e escutamos uma voz gravíssima e melodiosa.

— É sinal de que já encontrou... — disse Emilie, bruscamente. Só então soubemos que ela havia escondido o Livro, e que meu pai tinha vedado a casa para que o espaço entrevado impedisse todo ser humano de enxergar algo antes do reaparecimento do Livro.

Enquanto eu ajudava as mulheres a abrir portas e janelas, a voz não cessou de rastrear o espaço. Os que passavam na calçada paravam para ouvir e davam uma olhada para o interior já clareado, sem descobrir a origem do vozeirão. Olhavam para nós com alarde, como se indagassem: quem é o ventríloquo? De qual parede ou caverna vem essa voz? Vinha do quarto aberto, onde um corpo febril há dias em jejum vociferava as preces do último dia. Desde então, cresceu em mim um fascínio, uma curiosidade desmesurada pelas três linhas rabiscadas por Emilie e pela voz de meu pai. Já estava me habituando àquela fala estranha, mas por algum tempo pensei tratar-se de uma linguagem só falada pelos mais idosos; ou seja, pensava que os adultos não falavam como as crianças. Aos poucos me dei conta de que eles gesticulavam mais ao falar naquele idioma, e ouve casos em que intuí ideias através dos gestos. Numa noite em que bisbilhotava a conversa, perguntei se conversavam sobre o novo vizinho.

Responderam que falavam de mim, da minha curiosidade, do fato de eu querer vagar entre vozes que escutava sem compreender. Nessa noite, ao me acompanhar até o quarto, minha mãe
sussurrou que no próximo sábado começaríamos a estudar juntos o “alifebata”. Sentada na cama, me confidenciou que sua avó lhe ensinara a ler e escrever, antes mesmo de frequentar a escola. Para comentar a aprendizagem da língua-mãe, me contou sucintamente como falecera Salma, minha bisavó, aos 105 anos de idade. Sem relutância ou assombro, acreditei piamente nas palavras que me acenderam os olhos, enquanto transparecia o abismo celeste no vão da janela, pois daquele precipício sem fim seres alados e iluminados deixaram sua moradia para flutuar junto ao leito da morte.

— São mais de vinte anjos e surgiram entre as criancinhas —, lhe dissera Salma antes de fechar os olhos. E de tanto ela repetir a história de Salma e dos anjos, acabei sonhando com Salma e os anjos. No dia seguinte, a história e o sonho pulsavam no meu pensamento como as águas de dois rios tempestuosos que se misturam para originar um terceiro. Eu me deixava arrastar por essa torrente indômita, pensando também no desenho da caligrafia que lembrava as marcas das asas de um pássaro que rola num espelho de areia, na voz austera do meu pai, mais lúdica do que lúgubre, voz polida e plácida que tentei imitar assim que aprendi o alfabeto e antes mesmo de pronunciar uma única palavra na língua que, embora familiar, soava como a mais estrangeira das línguas estrangeiras.

Esperei o sábado, ansioso para que evaporassem as horas e os minutos, redobrando a atenção quando meu pai deixava escapar uma frase no outro idioma. No sábado ao meio-dia, antes de sentar à mesa para almoçar, da minha boca jorraram as palavras que ele acabara de falar, que sempre falava antes de cada refeição. Samara lançou um olhar incrédulo para mim e soltou uma gargalhada, logo engasgada pelo silêncio dos pais. Ele me olhou, e aquele olhar, que durou o tempo de um espasmo, fulgurava como o olhar de um recém-nascido ofuscado pelo impacto da primeira explosão de luz.

As primeiras lições foram passeios para desvendar os recantos desabitados da Parisiense, os quartos e cubículos iluminados parcialmente por claraboias: o corpo morto da arquitetura. Sentia medo ao entrar naqueles lugares, e não entendia por que o contato inicial com um idioma inaugurava-se com a visita a espaços recônditos. Depois de abrir as portas e acender a luz de cada quarto, ela apontava para um objeto e soletrava uma palavra que parecia estalar no fundo de sua garganta; as sílabas, de início embaralhadas, logo eram lapidadas para que eu as repetisse várias vezes. Nenhum objeto escapava dessa perquirição nominativa que incluía mercadorias e objetos pessoais: cadinhos de porcelana, almofadas bordadas com arabescos, pequenos recipientes de cristal contendo cânfora e benjoim, alcovas, lustres formados de esferas leitosas de vidro, leques da Espanha, tecidos, e uma coleção de frascos de perfume que do almíscar ao âmbar formava uma caravana de odores que eu aspirava enquanto repetia a palavra correta para nomeá-los. No fim da peregrinação aos quartos e às vitrinas da loja, sentávamos na mesa da sala, e ela escrevia cada palavra, indicando as letras iniciais, centrais e finais do alfabeto. Eu copiava tudo, esforçando-me para escrever da direita para a esquerda, desenhando inúmeras vezes cada letra, preenchendo folhas e folhas de papel almaço pautado. No fim da tarde, corria para mostrar ao meu pai as anotações, que ele corrigia, enquanto Emilie desaparecia no quarto contíguo ao seu, onde só ela entrava. Ela ensinava sem qualquer método, ordem ou sequência. Ao longo dessa aprendizagem abalroada eu ia vislumbrando, talvez intuitivamente, o halo do “alifebata”, até desvendar a espinha dorsal do novo idioma: as letras lunares e solares, as sutilezas da gramática e da fonética que luziam em cada objeto exposto nas vitrinas ou fisgado da penumbra dos quartos. Passei cinco ou seis anos exercitando esse jogo especular entre pronúncia e ortografia, distinguindo e peneirando sons, domando o movimento da mão para representá-los no papel, como se a ponta do lápis fosse um cinzel sulcando com esmero uma lâmina de mármore que aos poucos se povoava de minúsculos seres contorcidos e espiralados que aspiravam à forma dos caracóis, das goivas e cimitarras, de um seio solitário que a língua ao contato com o dorso dos dentes e ajudada por um espasmo fazia jorrar dos lábios entreabertos um peixe Fenício.

Desde pequeno convivi com um idioma na escola e nas ruas da cidade, e com um outro na Parisiense. E às vezes tinha a impressão de viver vidas distintas. Sabia que tinha sido eleito o interlocutor número um entre os filhos de Emilie: por ter vindo ao mundo antes que os outros? Por encontrar-me ainda muito próximo às suas lembranças, ao seu mundo ancestral onde tudo ou quase tudo girava ao redor de Trípoli, das montanhas, dos cedros, das figueiras e parreiras, dos carneiros, Junieh e Ebrin? Mas isso não me sacudia o pensamento, me intrigava antes sua caminhada solitária quando nos despedíamos após as lições. Sem deixar vestígios, ela desaparecia naquele aposento que sempre me interessou pelo simples fato de ter sido um espaço inviolável, inacessível até mesmo ao meu pai, que fazia vista grossa sempre que Emilie entrava e saía do esconderijo carregada de badulaques, de papéis repletos de palavras e expressões que havíamos mastigado durante a tarde dos sábados. Só quando mudamos para a casa nova (o sobrado), o santuário de segredos desmoronou. Mudar de casa traz revelações, deixa mistérios, e na passagem de um espaço a outro, algo se desvenda e até mesmo o conteúdo de um
pergaminho secreto pode tornar-se público. Os objetos do esconderijo da Parisiense ela arrumou no baú lacrado que carregou sozinha, caminhando ao longo dos dois quarteirões que separam as duas casas. Eu a seguia de longe. Nas pausas que ela fazia para recobrar forças, me escondia atrás do tronco de uma mangueira. Ela nunca me perdoaria se me enxergasse pertinho dela, vigiando seus passos, cuidando para que ela não tropeçasse e tombasse com o seu mundo guardado no baú. Ao entrar na casa nova, fiquei matutando: onde minha mãe teria enfronhado o volume pesado, repleto de pertences inacessíveis, de antigos segredos?

Numa manhã em que Emilie se ausentara para ir ao mercado, comecei a vasculhar o quarto dos pais. Àquela época eu devia ter menos de vinte anos e lembro que a casa era realmente imensa. Éramos então quatro irmãos, e o amplo espaço do sobrado acomodou a família, que, bem ou mal, foi acolhendo os pequeninos que chegaram num intervalo de seis anos: tu, o teu irmão e Soraya Ângela. Ali no quarto dos pais, revirei tudo de cabeça para baixo, remexendo nos lugares onde a gente sempre pensa encontrar uma chave: nas frestas das janelas, dentro dos móveis, debaixo dos tacos soltos, dos travesseiros e do colchão onde eles dormiriam juntos algumas décadas. Foi uma busca meticulosa que durou várias manhãs daquele mês de agosto. Hoje, parece a manhã do século passado. A busca só tornou-se frutífera quando, beirando a impaciência, comecei a chacoalhar e entornar alguns objetos, como o pedaço de cedro do Líbano formado pela secção de um cone. A parte abaulada estava coberta pela casca da árvore e a inclinada seria totalmente lisa se não existisse um minúsculo cedro em relevo, pouco maior que um olho humano. Mais tarde compreendi por que Emilie prolongava sua sesta imersa na rede e sempre com o olhar nostálgico no console onde repousava o pedaço de madeira; descobri então que a árvore em miniatura era a abertura de um objeto que eu julgava inteiramente maciço. No coração do cedro, tal uma fenda na madeira, um par de chaves se incrustava. Uma das chaves abriu o armário mastodonte, e as portas abertas revelaram-me, pela primeira vez, o mundo íntimo de Emilie. Lembro muito bem que fiquei encabulado e fascinado diante de tantos objetos ausentes nos aposentos da Parisiense; mas a a vexação e o desvario quase sempre tomam
conta de alguém que se depara com a intimidade do outro.

O interior do móvel encerrava uma indumentária luxuriante, costurada com brocados magníficos. Confinada num recanto escuro, abandonada e em desuso, a vestimenta parecia aludir a um corpo vivido em outro tempo, caminhando sobre outro solo e desafiando as estações de uma região longínqua; imaginava como teria sido o corpo de Emilie coberto com aquela vestimenta exótica, que eu divisava parcialmente no canto sombrio do armário; imaginava cenas esparsas de sua adolescência, como hoje imagino as minhas incursões sucessivas ao interior do armário, à procura de um objeto, de palavras. Esta visita repetiu-se por várias manhãs, porque, ao abrir o baú, detinha-me diante da visão do relógio deitado, a ocupar quase toda a superfície forrada de veludo também negro, tal como um barco cravado e esquecido no fundo do oceano. Enxergava, através da tampa de vidro, as cartas de que me falara Hindié; e violar aquela correspondência guardada dentro do relógio implicava penetrar num tempo longe do presente. Brincava, talvez sem saber, com esse jogo delicado e insensato que consiste em desvendar o passado de alguém, percorrendo zonas desconhecidas do tempo e do espaço: Trípoli, 1898; Ebrin, 1917; Beirute, 1920; Chipre, Trieste, Marselha, Recife e Manaus, 1924. Eram datas e lugares citados esparsamente por Hindié, e eu queria associá-los à vida de Emilie, descobrir os eventos guardados no ventre daquela caixa escura. Numa manhã já distante da que eu descobrira as chaves, depois de tantas vezes adiar o gesto de girar a chave menor, de polir com o olhar a superfície plana e vítrea, tanteando com os olhos os ângulos de penumbra, decidi abrir a tampade cristal, penetrar no fosso do relógio deitado, de onde o disco dos ponteiros, os números, o pêndulo, tudo estava coberto por objetos. Vi primeiramente as duas pulseiras de ouro, argolas delgadas, entrelaçadas por nós quase invisíveis; a bem dizer, não eram nós ou junções que faziam das duas argolas uma só; para mim, espécie de entrelaçamento mágico, uma inexplicável articulação que, ao ser manuseada, provoca curiosidade e espanto. Em algum dia do passado tu deves ter reparado no bracelete enroscado no antebraço de Emilie, como uma tatuagem dourada; na verdade eram quatro argolas unidas por não sei o quê. Nas outras incursões que fiz ao baú — para reler uma carta —, encontrei outro par de pulseiras, como um novo anel que surge no corpo de uma serpente. Demorou algum tempo para relacionar o numero de pulseiras aos filhos de Emilie. Nunca descobri de onde surgiram essas argolas delgadas que se reproduziram secretamente no leito do relógio. Nenhuma menção sobre elas encontrei nas cartas, e várias vezes me contive para não indagar à Emilie a origem do bracelete; essa renúncia definitiva me convenceu de uma vez por todas de que há segredos poderosos ou enigmas indecifráveis que certas pessoas levam dentro de si até a morte. Quando meu irmão caçula nasceu, as quatro pulseiras passaram a pertencer ao corpo de Emilie. Nessa época eu já havia escrutinado todos os cantos do baú e do relógio ali encerrado: vi o hábito branco salpicado de bolor, de manchas amarelas e de nódoas de umidade, os sinais do abandono. Jamais ousei tocar naquela túnica de linho nem na auréola plissada, esta repousada sobre aquela, e ambas dobradas com cuidado, como a sombra de um rosto e o contorno de um corpo amparados pelo disco do relógio. Estavam intactas há muito tempo, pois além das manchas e do mofo, uma infinidade de fios formavam um teia compacta e espessa, que certamente crescia a cada dia; estes sinais de permanência e desuso, de distância e segredo, talvez me tivessem impedido de remexer nos panos que Emilie vestira por tão pouco tempo em Ebrin. Essa passagem de sua vida, bem como outras disseminadas entre o Líbano e Manaus, consegui ordená-las graças às cartas empilhadas sob o disco do pêndulo, nos confins da caixa de madeira.

A leitura da caligrafia minúscula foi um trabalho maçante para mim. Escrita em árabe clássico, e sempre assinada por V.B., a correspondência atravessava anos e anos, às vezes interrompida em intervalos de meses. Nessas zonas de silêncio, eu perdia o fio da meada e enfrentava dificuldades com a escrita, saltando frases inteiras e vituperando contra os vocábulos, como um leitor encurralado por signos indecifráveis. A descontinuidade da correspondência e a incompreensão de tantas frases me permitiam apenas tatear zonas opacas de um monólogo, ou nem isso: uma meia voz, uma escrita embaçada, que produzia um leitor hesitante. As passagens mais obscuras das cartas foram decifradas com o auxílio da intuição: um recurso possível para sair do impasse da leitura pontilhada de titubeios, sem o auxílio de um dicionário, embora folheasse a torto e a direito os cadernos de anotações que Emilie guardara junto às cartas; entre as anotações, constatei que havia várias referências aos nossos encontros dos sábados, e espantou-me saber que o vocabulário compilado era vasto. Encontrei também algumas orações em francês, e eram tantas as Ave-Marias que imaginei Emilie escrevendo ladainhas quando não podia rezar nas noites de desespero. Quantas vezes eu a surpreendi entoando cânticos, com a palma das mãos repousadas no peito e os olhos saltando de uma bíblia à outra; creio que por isso não lhe foi difícil aprender os salmos em português, embora ela contraísse o rosto quando a travessia de um idioma ao outro soava estranha e infiel, como se alguns salmos e parábolas esbarrassem em pedras, tornando-se prolixos ou sem sentido. Este assunto deve ter sido relevante para Emilie porque V.B. o mencionou em diversas cartas e transcreveu uma passagem da bíblia em francês, pedindo à amiga a tradução portuguesa. Na visita que fiz ao túmulo de Emir, pude ler a mesma citação nos dois idiomas. As letras estavam gravadas na lápide, sob a fotografia de um corpo jovem.

O nome de Emir quase nunca era mencionado nas horas das refeições ou nas conversas animadas por baforadas de narguilé, goles de áraque e lances de gamão. Os filhos de Emilie éramos proibidos de participar destas reuniões que varavam a noite e terminavam no pátio da fonte, aclarado por uma luz azulada. Era um momento em que os assuntos, já peneirados, esgotados e fartos de serem repetidos, davam lugar a confidências e lamúrias, abafadas às vezes pela linguagem dos pássaros, e entremeadas por exclamações e vozes que pronunciavam o nome de Deus. Era como se a manhã — como uma intrusa que silencia as vozes calorosas da noite — dispersasse o ambiente festivo, arrefecendo os gestos dos mais exaltados, chamando-os ao ofício que se inicia com a aurora. Mas, em algumas reuniões de sextas-feiras, o prenúncio da manhã não os dispersava. Eu acordava com berros dilacerantes, gemidos terríveis, ruídos de trote e uma algazarra de alimárias que assistiam à agonia dos carneiros que possuíam nomes e eram alimentados pelas mãos de Emilie. Corria até o quarto dos pais e, através das frestas dos janelões, via o sangue esguichar do pescoço do animal, cobrir-lhe os olhos ainda abertos, penetrar-lhe nos pelos alvos e cacheados. Naquele corpo agonizante, alastrava-se uma cor indecisa que lembrava uma mancha crepuscular no meio do pátio exposto à manhã nascente. Esperava-se o sangue escorrer até a última gota, para então cortar, esquartejar e destrinchar o animal. Com as mãos, Emilie arrancava-lhe as vísceras, arrumando sobre uma placa de cedro o que seria aproveitado, e atirando aos animais as partes rejeitadas pelo homem. E enquanto um vórtice se formava ao seu redor — aves, quadrúpedes e símios disputando as entranhas do carneiro — ela lavava e limpava o fígado, e o temperava com sal, pimenta do reino e hortelã. Os tabuleiros de gamão eram retirados da mesa e algum jogador lembrava que o próximo lance de dados lhe pertencia.

Emilie ajudava Anastácia Socorro a trazer os pães de massa folheada, dobrados como se fossem lenços de seda, e uma cesta com figos da índia, jenipapos, biribás, abacaxis e melancias; e numa cumbuca de barro cozido, entre papoulas colhidas do jardim, havia cachos de pitomba, réstias de maracujá do mato e outras frutas azedíssimas, que em contato com a língua
provocavam calafrios no corpo e crispações no rosto. Mas o rosto de Anastácia Socorro se crispava por outra razão: depois de arrumar a mesa, ela se refugiava numa das alfurjas da casa, para não presenciar a cena da comilança. No centro de um pátio iluminado pelo sol equatorial, homens e mulheres repetiam o hábito gastronômico milenar de comer com as mãos o fígado cru de carneiro. Não era a um ritual bárbaro ou ao sacrifício de um animal que eu assistia do quarto dos pais, mas sim a uma novidade assombrosa, a uma festa exótica que tanto contrastava com o ritmo habitual da casa.

Havia extravagância e prazer nos gestos para saciar a bulimia. Na entrega deliberada às carnes do animal, contrariando a assepsia do dia a dia, as mãos levavam à boca um pedaço de fígado fresco, e o pão circulava de mão em mão, despedaçado por dedos lambuzados de azeite e zátar. Havia quem cantasse a última canção na moda no Cairo, quem recitasse um poema místico ou uma fábula de Attar, ou evocasse o Canto da Rosa, do Cravo, da Anêmona e concluía, ao citar o canto do Jasmim, que o desespero é um erro. Elogiavam-se os temperos, os doces de semolina com nozes e mel, e a compota de pétalas de rosa, que todos aspiravam demoradamente antes de provar. Alguns, temendo não ser convidados para o jantar do sábado — quando seria preparado o pernil de carneiro assado com tâmaras — esperavam ansiosos o momento da despedida, para que meu pai citasse a frase em que Deus permitia abrir-lhes as portas da casa para a ceia de amanhã.

Essas reuniões continuaram na casa nova, mas foi na Parisiense que me deparei com sua existência. A conversa era exclusivamente em árabe, salvo os cumprimentos de algum transeunte conhecido, ou a visita de um ou outro vizinho, alguns deles estrangeiros, como a família do poveiro Américo, os Benemou, do Marrocos, e Gustav Dorner, o rapaz de Hamburgo; todos amicíssimos de Emilie, e o último, além de amigo, tornou-se meu confidente.

Foi através de Dorner que conheci a primeira biblioteca da minha vida. Era formada por oito paredes de livros, que felizmente só conheci anos mais tarde, pois caso contrário teria me inibido para sempre o hábito da leitura que então adquiria. Sua voz era tão grave quanto seu nome, e falava um português rebuscado, quase sem sotaque e que deixava um nativo desconcertado, a ponto de só não o confundir com um amazonense por causa do aspecto físico: era mais alto e mais loiro que todos os alemães da cidade, e se vestia de um modo bastante peculiar para a época; trajava uma bermuda que ia até os joelhos, uma camisa branca sem colarinho, e calçava sapatos de cromo, sem cadarço e sem meia. Atada num cinturão de couro, pendia de sua cintura uma caixa preta; os que a viam de longe pensavam tratar-se de um coldre ou cantil, e ficavam impressionados com a sua destreza ao sacar da caixa a Hasselblad e correr atrás de uma cena nas ruas, dentro das casas e igrejas, no porto, nas praças e no meio do rio.Possuía, além disso, uma memória invejável: todo um passado convivido com as pessoas da cidade e do seu país pulsava através da fala caudalosa de uma voz troante, açoitando o silêncio do quarteirão inteiro. Mas a memória era também evocada por meio de imagens; ele se dizia um perseguidor implacável de “instantes fulgurantes da natureza humana e de paisagens singulares da natureza amazônica”. Há tempos ele se dedicava à elaboração de um “acervo de surpresas da vida”: retratos de um solitário, de um mendigo, de um pescador, de índios que moravam perto daqui, de pássaros, flores e multidões.

Tu e teu irmão conheceram Dorner. Não sei se naquele tempo foste aluna dele, mas sabes o quanto era distraído. Às vezes pensava que a sua distração era uma maneira de se esquivar das pessoas e da realidade que o cercavam; tudo o que ele enxergava era enquadrado no visor da câmera; dizia-lhe, troçando, que as lentes da Hassel, dos óculos e as pupilas azuladas dos seus olhos formavam um único sistema ótico. Ele nunca se irritava com essas comparações um tanto aberrantes; respondia-me que ao olhar para a Hassel via seu próprio rosto. E em certas noites calorentas, ao regressar de uma caminhada pela cidade deserta, deparava-se com o seu outro rosto iluminado e embutido num cubo de vidro, onde a Hassel repousava durante a noite, madrugando no morno de uma lâmpada, calor-artifício para afugentar fungos, preservar a nitidez da lente, e para que o olhar através do visor fosse límpido: triunfo da transparência.

Dorner fotografou Emir no centro do coreto da praça da Polícia. Foi a última foto de Emir, um pouco antes de sua caminhada solitária que terminaria no cais do porto e no fundo do rio. A história desse retrato me contou o próprio Dorner, anos depois, com palavras medidas para não revelar um fato atroz que eu já havia intuído ao ler as cartas de Virginie Boulad. A foto contava o que Dorner não me pôde dizer: o rosto tenso de um corpo que caminhava em círculo ou sem rumo; uma das mãos de Emir desaparecia no bolso da calça, e a outra mão acariciava uma orquídea tão rara que Dorner nem atinou ao desespero do amigo.

Num dos nossos últimos encontros, Dorner relembrou aquela manhã, e me mostrou alguns cadernos com anotações que transcreviam conversas com meu pai.”

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