Looping:
Ciclo temporal
infinito; no qual
não existe uma
linha temporal.
[...]
[03:18 - Rosie]
Seu olho melhorou?
Eu encaro a tela do celular em minha mão com um sentimento de confusão sobre o que responder. Algo dentro de mim se revira em desaprovação sobre mentir para as minhas únicas amigas, mas não tenho o que fazer senão seguir as instruções de Jennie.
O barulho em meu estômago me faz lembrar de que estou faminta e não me arrisquei a comer nada desde que acordei, há dois dias.
Jogo as pernas para fora do colchão e trilho meu caminho até a cozinha, apenas para ligar a cafeteira. A luz da lua invade minha casa, como de costume. A essa altura, a casa já é praticamente dela também.
As palavras de Jennie ressoam dentro da minha mente como uma ameaça sombria.
Experimente ficar dois dias sem devorar ninguém.
Eu engulo em seco; minha mão trêmula graças à hipoglicemia aperta o botão de ligar da cafeteira e eu me direciono à sacada. Preciso de ar fresco.
Jogo os braços em cima do mármore frio da mureta da sacada e abaixo a cabeça com a dor que dispara próxima à minha têmpora. Sem que eu me dê conta, estou respirando mais rápido do que gostaria e preciso me forçar a desacelerar meu corpo.
O frio impetuoso do início do inverno parece não incomodar minha pele exposta pela regata folgada e isso me assusta um pouco.
Para ser sincera, ainda não assumi nada para mim. Não tenho coragem.
Embora eu saiba que algo esteja diferente, não consigo averiguar a situação. Como um enfermo que teme pelo seu diagnóstico com alguma doença terminal.
Eu simplesmente não quero encarar a realidade como ela é.
Ergo a cabeça e sinto seu olhar sobre mim, como todas as madrugadas. Quando viro o rosto, Jennie está lá, com seu olhar atento me analisando do seu jeito costumeiro.
Ela nada diz e eu também me recuso a dizer qualquer coisa.
Quando Jennie entra em casa e some do meu campo de visão, sei que é a deixa para que eu destranque a porta e é exatamente o que faço.
Assim que ela aparece, eu deixo o peso do meu corpo desabar sobre ela. A consciência de que ela é menor que eu parece sumir, e honestamente Jennie é muito mais forte do que parece, porque sustenta meu corpo com facilidade.
Nós duas ainda estamos em silêncio, parece que qualquer palavra que possamos proferir tem a capacidade de romper nossa familiaridade presente nesses encontros da madrugada. Principalmente nesse momento em que me sinto desmanchando em cima dela.
Ela me conduz para o sofá e eu me aconchego entre as suas pernas desnudas graças à camisola de linho preta.
— Você comeu alguma coisa, Lisa? — sua voz baixa acaricia meu rosto e eu escondo a minha face em sua blusa, na esperança de que ela não leia meus olhos. — Lisa. — ela segura meu rosto e o ergue. — Seus olhos estão fundos. Você precisa comer.
— Jennie... — eu viro o rosto, evitando seus olhos.
— Lisa, eu estou falando sério. Você precisa comer.
— Eu não vou, eu estou bem.
— Lisa... — algo na forma que ela o sussurra arrepia todos os pêlos do meu corpo e meu instinto é erguer o tronco e deixar nossas faces paralelas.
Sinto como se, dentro de mim, algo estivesse urgindo por ficar próxima de Jennie, quase unindo minha existência à dela como se fôssemos um só ser.
Ela fecha os olhos e seus lábios deslizam sobre os meus, mas a gente ainda não se beija. Consigo sentir nossas respirações fundas se mesclando e acabo fechando os olhos também.
Jennie puxa minha regata, como se estivesse sedenta por cessar o espaço entre nós e eu ergo mais ainda o tronco, apoiando minhas mãos nos lados de sua cabeça.
O abismo entre nossos olhares é de uma infinita profundidade, parece que não existe mais nada além de nós duas enquanto eu revezo entre sua boca e seus olhos.
Ela já está entregue, apenas esperando minha atitude e eu me mantenho focada em gravar cada pedaço do seu rosto no fundo da minha mente, como um retrato feito à mão de um exímio pintor para sua musa.
Em algum momento eu encosto a testa na sua e Jennie deixa escapar um suspiro pesado, carregado com todas as palavras que gostaria de dizer, mas não poderia.
Eu tenho a sensação de que ela me esconde muito. Na verdade, tenho a sensação de que ela me esconde tudo, e mesmo assim, não consigo deixar de confiar cegamente no pouco que Jennie me deixa ciente. É como se algo dentro de mim a conhecesse, como se ela estivesse dentro de mim e meu interior testificasse a respeito dela.
Seus braços envolvem meu pescoço e repouso a cabeça em seu ombro, deixando o peso do meu corpo cair sobre o seu, ao mesmo tempo em que suas pernas se entrelaçam em minha cintura.
[...]
O cheiro irresistível que alcança minhas narinas me desperta do sono profundo. Ainda está de noite, eu consigo ver a lua perfeitamente.
Estou entre as pernas de Jennie e ela está dormindo com as mãos no meu cabelo, como se tivesse adormecido enquanto me acariciava.
Eu me estico cuidadosamente para não acordá-la, enquanto me esforço para identificar de onde vem esse cheiro maravilhoso que deixa meus sentidos descontrolados.
Caminho desengonçadamente até a sacada e o cheiro parece vir do beco há uma quadra do meu apartamento. O impulso de me lançar prédio à baixo é mais forte do que qualquer pensamento racional e quando me dou conta, já estou na rua, farejando como um animal selvagem a origem desse cheiro fenomenal.
Eu não sei ao certo o que é, mas é suculento e faz minha boca salivar.
Ainda estou andando quando algo me empurra contra um muro com uma força tão grande que faz os tijolos atrás de mim esfarelarem.
Minha reação é empurrar quem quer que seja com toda a minha força e o barulho do ser colidindo com um monte de caçamba de lixo é o suficiente para fazer algumas luzes se acenderem pela vizinhança.
— Lisa?! Que merda é essa?!
— Mark?! — eu o encaro em completa confusão.
— Que porra aconteceu com seu olho?! — ele se aproxima com uma careta de confusão, mas parece ter sua resposta no mesmo segundo. — Caralho! Você também é um carniçal, puta merda. Isso é bom, porque se não fosse, eu teria te matado agora para te devorar. Caramba, eu não sabia que você era uma de nós!
Sinto uma pontada atingir minha têmpora e acabo pressionando a palma da mão na região enquanto meus passos vacilam um pouco ao me aproximar de Mark. O maldito cheiro ainda está bagunçando meus sentidos e tornando quase impossível raciocinar.
— De onde tá vindo esse cheiro? — eu balbucio quando ele para à minha frente e examina meu olho.
— Que maneiro, Lisa! — ele exclama e tenta encostar no meu rosto, mas acerto um tapa em sua mão antes. — Ai!
— Que cheiro é esse? — insisto, virando o rosto na direção do cheiro na intenção de localizá-lo com mais facilidade.
— Provavelmente é o corpo que eu acabei de desovar. Sabe, só sobraram uns restinhos. Você pode ficar, se quiser, mas a maior parte é puro músculo. Dei o azar de pegar um rato de academia. — ele balança a cabeça negativamente. — Eu desperdicei uma refeição. Não recomendo que você coma.
Eu hesito por alguns segundos e sinto meus joelhos vacilarem. Não é possível que eu tenha me atraído pelo cheiro da carne humana. Não é possível que esse seja o cheiro que me deixou entorpecida.
[...]
Eu entro em casa com passos vacilantes. O sol nasce aos poucos e timidamente faz-se presente em meu apartamento.
Me sinto atordoada, como se tivesse saído do meu corpo por alguns instantes e então, com uma queda brusca, tivesse voltado para mim mesma de novo.
O barulho da porta fechando atrás de mim desperta Jennie, que até então ainda estava dormindo no meu sofá. Ela se senta, coça os olhos e seu olhar repousa em mim antes dela o arregalar e vir com pressa na minha direção.
— O que aconteceu? — suas mãos tocam meu queixo e deslizam até meu colo, manchados de um sangue já seco. — Lisa?
Minha cabeça dói e meus olhos ardem demais para que eu possa dizer qualquer coisa. O bolo de amargura na minha garganta me garante que eu não estou capaz de me comunicar no momento e a única coisa que faço é deixar meu corpo pender sobre o seu e me desmancho em um choro angustiado e esganiçado enquanto Jennie me afaga a nuca, sussurrando que está tudo bem.
Mas eu sei que não está.
— Lisa! — a voz de Rosé nos interrompe e antecede batidas na porta.
— Porra... — o grunhido escapa dos meus lados.
— Ei... — Jennie segura meu rosto e me obriga a encará-la. — Foca em ir ao banheiro se lavar, deixa que eu cuido dela, okay?
Eu assinto e me direciono ao banheiro antes que Jennie abra a porta.
Quando ligo o chuveiro parece que meus sentidos estão mais apurados porque, mesmo com a barulheira que ele faz, consigo escutar a conversa tensa entre as duas.
"Eu vim ver se a Lisa estava bem e trouxe café da manhã para ela... Eu mandei uma mensagem mas ela não respondeu." Essa é a voz de Roseanne, seguida do barulho de algo macio sendo depositado em alguma superfície. Provavelmente ela trouxe algo da cafeteria e deixou no meu balcão.
"Ela está bem sim, acho bonita sua preocupação." Jennie declara e escuto um recipiente ser cheio quase até a borda. O perfume do café fazendo cócegas no meu nariz me ajuda a identificá-lo. "Acho que ela esqueceu de te responder."
Eu saio do chuveiro e me enrolo na toalha, pronta para atravessar a sala — que mais parecia um campo de batalha com essas duas nessa guerra fria.
— Oi, Lisa! Você não viu minha mensagem? — Rosé dispara assim que me vê saindo do banheiro.
— Eu vi, mas acabei esquecendo de responder. — finjo que não, mas vejo perfeitamente o momento em que Jennie torce o canto dos lábios em um sorriso cínico.
— Eu falei... — ela cantarola e Rosé retrai a expressão em raiva contida.
— Eu vou me vestir e já volto. — tento escapar dali o mais rápido possível.
Mas tenho a consciência de que preciso ser rápida na minha tarefa de me vestir porque só Deus sabe o que é capaz de acontecer com aquelas duas sozinhas na minha cozinha.
Quando eu volto, Jennie e Roseanne estão em completo silêncio, ignorando a presença uma da outra.
— Trouxe uns bolinhos pra você. — Chaeyoung me estende o saco que ela tinha despejado no balcão e eu assinto, me aproximando para depositar um beijo em sua testa.
— Obrigada, Chaeyoung, mas eu tô meio enjoada recentemente. Acho que vou ficar só com o café mesmo. — tento sorrir amigavelmente, mas o clima não contribui para isso.
— Aqui seu café, amor. — Jennie sibila, transbordando do seu veneno e me estende a caneca.
Eu sinto meu rosto arder furiosamente quando agradeço timidamente em voz alta e ela sorri completamente satisfeita em obter o resultado que esperava, porque escuto Chaeyoung bufar do meu lado.
— Eu deveria ter suposto. — ela declara com desgosto. — De qualquer forma, Lisa, que bom que você está bem. Eu realmente apenas me queria certificar de que você está conseguindo dormir direito ultimamente.
— Obrigada, Rosie. Eu-
— Ah, não precisa se preocupar, Rosé. Sempre que Lisa tem problemas com insônia eu venho fazer companhia a ela. — Jennie exibe seu sorriso largo. — Já somos praticamente parceiras de madrugada.
— Informação demais. — Chaeyoung assobia e revira os olhos. — Enfim... Na próxima vez me responde na hora pra eu não ficar preocupada, okay?
— Sim, senhora. — eu a abraço na esperança de que isso alivie o clima entre nós. — Obrigada, Chaeyoung.
— De nada, Lisa. — ela se desvencilhou dos meus braços educadamente e eu não consegui deixar de me sentir ofendida com isso.
Roseanne mal se despede, apenas vai embora do meu apartamento sem poupar tempo.
Assim que ela fecha a porta eu suspiro, jogando o saco com os bolinhos na lata de lixo da cozinha.
— Você também não facilita, não é? — encaro Jennie, que me olha com uma falsa expressão de inocência.
— Facilito o que? — ela se aproxima e abraça meu pescoço. — Esquece isso. Você precisa me dizer o que aconteceu durante a madrugada.
— Eu não me lembro direito, mas acho que devorei alguém.
Dizer isso em voz alta faz a uma dor despontar na minha nuca e minhas pálpebras se fecham instintivamente. Jennie percebe meus músculos retesando e deposita um beijo em meu pescoço.
— Esse é só o primeiro.