Refúgio.
Em sentido amplo, o significado de refúgio vem a ser local tranquilo que oferece paz, tranquilidade, sossego. Há também, o refúgio ambiental, lugar que alguém procura para fugir ou para se livrar de um perigo; abrigo. Lugar onde alguém pode se esconder ou ocultar alguma coisa; esconderijo.
Como citado à cima, um refúgio nem sempre é um lugar físico aonde você se camufla e esconde-se de algo, alguém ou um sentimento. Às vezes - ou até sempre -, um espaço de fuga pode ser alguém. Aquela pessoa que te conforta e faz você se sentir em casa, literalmente dando sentido à frase: "Tu és meu lar". Quando alguém se torna seu porto seguro, você tende a dormir pensando nela e acordar fazendo o mesmo. Você levanta da cama pensando nessa pessoa; você toma um banho gelado pelas manhãs pensando nessa pessoa; você toma seu café da manhã pensando nessa pessoa. Sempre ansiando e imaginando: "Quando verei-lhe novamente?". A sensação de ver aquela pessoa na qual se transformou em seu abrigo é como saborear uma ótima comida japonesa fresquinha diretamente de um dos melhores restaurantes da cidade.
Para Roseanne Park, ou como é conhecida: Rosé, atualmente um refúgio é quando ela está na escola. Pois quando a garota loira volta para sua casa vendo que o carro de sua mãe não está na grande garagem da mansão em que vive, e ao entrar na residência acaba, praticamente sempre, se deparando com seu padrasto a esperando sentado no sofá, com seu uísque caríssimo em mãos, a encarando com um sorriso presunçoso nos lábios sem mostrar seus dentes coberto por aquelas lentes de contato brancas e perfeitamente alinhadas que se pareciam mais com teclas de um piano antigo e gelado de uma orquestra, como se tocassem uma melodia dissonante e perturbadora semelhante as mesmas que se passam durante um filme de terror em que o assassino esquarteja as vítimas com tranquilidade, a neozelandesa já sabe o que está por vir: o terror; a angústia; o medo; a ansiedade; o pavor; a sensação de podridão.
Roseanne era uma adolescente de 17 anos que vivia com sua mãe, Clare Thompson, e seu padrasto, David Thompson. Seus pais se divorciaram quando ela ainda era muito nova, e sua mãe, Clare, ficou com sua guarda. Na época, seu pai, Mason Park, ficou com a guarda de sua irmã mais velha, Alice, que hoje tem 21 anos. Sua relação com o patriarca Park sempre foi boa e harmoniosa, porém seu padrasto nunca aceitou este fato, então sempre fez de tudo para se afastarem e não terem contato.
No aniversário de 11 anos de Rosé, seu pai apareceu na porta da casa com um lindo buquê de rosas como um presente para sua "Pequena Chaeyoung", como o mesmo diz. Mas ao invés de Roseanne recebê-lo, David apareceu antes e falou que a menina não estava esperando a visita de Mason, o xotando para fora da grande residência Thompson. Na época, o pai achava que era a mando de sua filha, mas meses depois descobriu que era apenas mais uma das birras do atual marido de sua ex-esposa.
Quando a garota de fios loiros completou seus 16 anos, seu padrasto começou a pressioná-la dizendo que já tinha passado da hora da menina encontrar um namorado para "endireitar sua cabeça ingênua".
Que na verdade já não era mais tão ingênua desde que alcançou os 13 anos e o repugnante homem que sua mãe chama de marido começou a olhar a pequena garota com outros olhos. Olhares nojentos e maliciosos sendo lançados para uma menina que recém entrou em sua puberdade, o homem mais velho afirmava que estava cuidando dela e verificando se seu corpo estava indo bem, dando sempre essas desculpas quando Roseanne o perguntava o motivo de ter que tirar a roupa para que ele à tocasse dessa forma.
Nisso, seu padrasto descobriu sobre um garoto que era interessado em Roseanne desde que eram apenas pré-adolescentes, o mais popular e aclamado de École Sir John Franklin High School: Ryan Cooper. O famoso garoto de cabelos negros e uma tatuagem no pescoço - que diga-se de passagem, horrorosa – de um taco de hóquei mal desenhado, linhas tortas e tons azulados desconexos do desenho. Um verdadeiro jogador de hóquei canadense mirim.
Apesar das investidas do garoto e os incentivos nada sutis de seu padrasto, Roseanne nunca cedeu à ideia de namorar tão cedo. A menina sempre teve uma mente um pouco mais fechada, principalmente depois que os abusos começaram Rosé criou uma certa resistência contra pessoas do sexo masculino, exceto pelo seu pai que sempre a mostrou como uma dama deve ser tratada.
Seu pai e padrasto são o completo oposto. Enquanto Mason trata uma mulher com o respeito digno de uma rainha. David tratava uma mulher como um objeto. Na visão dele, pessoas do sexo feminino eram inferiores e deveriam ser tratadas como ele bem quisesse. Até os dias de hoje, Roseanne nunca entendeu como sua mãe trocou seu pai por esse maltrapilho. Mason e David eram tão diferentes que poderiam ser comparados a água e óleo, o fogo e gelo, o inverno e verão, a tempestade e calmaria, o sol e lua.
Roseanne chegando em casa, felizmente se depara com o carro de sua mãe pelo lado de fora da garagem. Pelo menos uma boa notícia depois de ter passado por uma cansativa avaliação de química no terceiro período. Ao abrir a porta, ela percebe sua mãe sentada no sofá mexendo no celular e com algum seriado qualquer passando pela televisão. Atentamente, a garota loira olha para os lados e não vê David por ali, deduzindo que o homem estaria no quarto ou no escritório.
Soltou um suspiro cansado, andando em passos lentos se aproximou da mulher que estava distraída e olhos atentos na tela de seu celular. Cutucou o pé de sua mãe, chamando a atenção dela.
— Oh, Chaeyoung, aí está você. — A mulher de mais idade fala se levantando com um resmungo, calçando seus chinelos e ficando de pé ao lado da filha, dando tapinhas no ombro da garota mais nova.
— Hum, sim. Boa tarde. — Rosé deu um pequeno sorriso forçado que passou despercebido pela sua mãe, a mais velha deduziu que era apenas cansaço pela manhã cansativa na escola. — Como foi o plantão da senhora?
— Foi normal como sempre, sabe? Nada novo. — falou com um dar de ombros despreocupado, dando um beijo na bochecha da mais alta e passando por ela. — Siga-me, fiz os biscoitos que você gosta. Imaginei que voltaria com fome da aula.
Roseanne deu um sorriso animado dessa vez, deixando sua mochila em cima do sofá de uma maneira desleixada e seguindo sua mãe em passos contentes até a cozinha. Quando chegou lá, viu sua mãe colocando um pequeno prato na bancada da ilha da cozinha que continha deliciosos biscoitos com erva doce e gotas de chocolate branco. Rosé sentou no banco e se preparou para dar uma generosa mordida em seu biscoito. Assim que mordeu, sentiu o quentinho vindo de dentro da pequena massa amanteigada que distribuía farelos pelos seus dedos e pelo prato branco de porcelanato. O sabor da erva doce explodindo pela sua boca e as gotas de chocolate branco derretendo pela sua língua, o gosto amanteigado dando todas as melhores sensações de um ótimo doce caseiro. A garota gemeu em satisfação, fechando seus olhos e engoliu rapidamente para agradecer sua mãe por ter feito mais uma vez essa divindade.
— Meu Deus, mãe! Eu estava morrendo de saudade de comer isso. — Roseanne falou já enfiando a outra metade do biscoito na boca. Sua mãe riu da reação da menina.
— Que exagero, menina. São apenas biscoitos. — Clare respondeu rindo. Ela sabia que sua filha tinha um apreço muito grande por comida desde que começou a comer. A mulher pegou algumas coisas na geladeira e deu início à mais uma receita, aparentemente ela estava inspirada hoje para seus pratos e guloseimas. — Chaeyoung? — Chamou-a.
Roseanne apenas deu um resmungo porque estava com a boca que deveria ter no mínimo três biscoitos ali dentro. A senhora Thompson deu uma risadinha ao ver sua filha devorando os biscoitos como se fosse um esquilo guardando comida para o inverno.
— Coma devagar, Chaeyoung. — Advertiu de uma maneira brincalhona. A menina apenas assentiu e quando terminou de mastigar, engoliu e deu um sorriso amarelo, sua mãe apenas balançou a cabeça negando e virou para a panela novamente. — Mas enfim, apenas quero saber como foi a escola.
— Normal... Tive prova de química, mas não foi nada muito extravagante. Porém acho que...
Roseanne interrompeu a si mesma e ficou em choque quando um biscoito foi retirado da sua mão. Sendo pego por dedos grossos e com uma aparência mais calejada, ela virou lentamente a cabeça para seu lado e erguendo o olhar, percebendo que era quem ela menos queria que aparecesse naquele momento. Toda a leveza e felicidade que Rosé estava sentindo por sua mãe estar em casa depois de um bom tempo em um plantão, sua mente estava distraída naquele momento comendo o bom e velho biscoito de sua genitora. Porém tudo se esvaiu ao perceber aqueles olhos pretos encarando seus olhos parecendo que estava sugando sua alma para o submundo.
— Olá, Roseanne.
Foi curto e grosso. A garota de cabelos loiros engoliu em seco se levantando lentamente do banco em que estava sentada. Fez uma reverência com a cabeça em respeito e seguiu em passos rápidos até a sala. Pegou sua mochila que estava jogada no sofá e subiu as escadas correndo, pulando de três em três degraus, tentando ignorar o peso do olhar de David, mas o frio na espinha não a deixou. O som de seus passos apressados foi o único som que ecoou até ela chegar ao seu quarto, onde se trancou por instinto, tentando se afastar do peso daquela presença. Seu coração parecia estar na boca, o peito subia e descia em uma respiração descompassada. Poderia passar dias, semanas, meses, anos; mas sempre seria a mesma sensação ao ver aquele rosto. O pavor que percorria em sua veia ao ter aquele olhar penetrante contra o seu. Com as pernas fraquejando fora até sua cama, tirando seu celular do bolso do moletom vermelho vinho usando suas mãos trêmulas para ligar para sua melhor amiga, aquela que sempre à ajudou com as crises e momentos como este. Mesmo a menina não sabendo o real motivo – pois Roseanne nunca o revelou – de sua amiga ficar nervosa dessa forma, sempre a ajudou sem rodeios.
Roseanne tinha várias amigas mulheres, mas também tinha alguns poucos amigos homens, que por coincidência - ou talvez nem tanta – seus amigos do sexo oposto eram a grande maioria homossexuais, talvez apenas dois ou três se diziam heterossexuais. Apesar de ter um pé atrás, com o tempo eles se mostraram legais e pessoas que Rosé poderia confiar até mesmo de olhos fechados. De todos esses amigos, tinha duas garotas que ela era mais próxima. Uma garota com os lábios de coração e uma beleza exuberante, já a outra menina, olhos felinos e uma beleza com traços perfeitamente desenhados que mais parecia uma pintura renascentista de tão bonita. Realmente um casal de dar inveja. Kim Jisoo e Jennie Kim namoravam desde o começo do ensino médio, mas desde o primário já tinham uma conexão absurda. Tudo conspirava a favor delas para ficarem juntas desde o início.
As três eram amigas desde pequenas, nunca se desgrudavam. Mesmo depois de Jennie e Jisoo começarem a descobrir seus sentimentos amorosos recíprocos, a amizade delas nunca deixou de existir mesmo que Rosé reclame o tempo todo sobre estar de vela. A visão de suas amigas juntas, tão perfeitas e naturais, fazia Roseanne se perguntar como seria ser amada daquela forma. Mas a ideia de alguém cuidar dela, de verdade, parecia tão distante... tão impossível, ainda mais quando seu próprio mundo desabava por causa de David.
Enquanto a mente de Roseanne tentava afastar o peso da presença de seu padrasto, seu dedo vacilante clicava no ícone de Jennie no celular. O toque do botão parecia um ato mecânico, mas seu coração batia mais rápido, como se cada toque no telefone fosse uma esperança. Jennie sempre soubera o que dizer para acalmar a mente de Chaeyoung, mesmo sem saber exatamente o que acontecia em sua casa. Ela nunca havia questionado a resistência de Rosé, mas sempre compreendeu que a amiga precisava de alguém que a entendesse sem pressões.
O celular tocou uma vez, duas, três... até que a voz de Jennie veio.
— Rosie? O que foi?
Roseanne respirou fundo, as palavras ficando presas na garganta, mas o simples fato de ouvir a voz acolhedora de sua amiga já a fez se sentir mais leve, como se o peso de sua realidade fosse, por um breve momento, um pouco mais suportável.
— Nada demais, Jen. Eu só... do nada fiquei nervosa, sabe? — Rosé falou enquanto mordia o lábio e tentava se acalmar, a voz melódica e suave de Jennie acalmava a menina de fios loiros.
— Sei... — Falou meio incerta.
Apesar de respeitar o espaço de Roseanne, a garota de olhos felinos é uma pessoa muito curiosa, está sempre tentando arrancar casquinha de quaisquer que sejam os motivos que deixam sua amiga chateada. Porém nunca conseguiu arrancar uma vírgula sequer, ela apenas tem algumas teorias da conspiração em cima disso. Jennie suspeita seriamente que o motivo seja em casa, pois quando a neozelandesa está na escola ou longe de casa, a garota aparenta estar bem e sorridente.
Mas Jennie nem imagina que embaixo de um sorriso, mil palavras se escondem.
— Como você acha que foi na prova de química? — A amiga mais velha perguntou pelo outro lado da linha. Buscando um assunto qualquer para distrair Rosé como sempre fazia.
As garotas começaram um diálogo que durou pelo menos o resto do dia, quando Rosé menos percebeu já tinha escurecido. Elas estavam em uma conversa incessante sobre a escola, as pessoas e também sobre Jisoo, porque se Jennie não estivesse reclamando e elogiando a garota dos lábios de coração, não seria a Jennie.
A Kim mais nova sempre implicava com Jisoo, porém sua linguagem do amor era essa, então sua namorada sempre revira os olhos e dá um peteleco em sua testa, as duas mantinham um relacionamento super amoroso. Mesmo se passando anos, Jennie ainda em todos os mêsversários de namoro dava sempre um buquê cheio de flores com um perfume incrível e um balde de frango frito crocante da rede de fast food KFC. Jisoo sempre fazia questão de dar um pote recheado de pequenos mandus para Jennie afirmando que a mais nova tinha as bochechas parecidas com o bolinho típico asiático.
O relacionamento delas era o exemplo perfeito de um amor que, mesmo cheio de implicâncias e provocações, trazia paz e segurança. Às vezes, Rosé se pegava imaginando se algum dia teria algo assim - alguém que a conhecesse tão bem que entendesse suas manias, alguém que estivesse sempre por perto, e que a visse como... única.
Seu sonho era alguém sentir esse amor puro por ela, um amor cheio de vida. Se perguntava se alguém iria dar a ela um pote com sua comida favorita – que no caso significa: qualquer coisa comestível; se alguém iria trazer um buquê de flores pra ela assim como seu pai faz em todos seus aniversários desde seus 6 anos; se alguém iria perceber gestos que nem ela mesma reconhecia em si; se perguntava se alguém seria capaz de não amar só ela, mas também como sua alma; se perguntava se iria ter alguém que ela ligasse e iria correndo imediatamente socorrer ela em uma crise, o que apesar de Jennie fazer, convenhamos que existe muita diferença entre uma amizade e um relacionamento. Mas não qualquer um, aquele relacionamento em que seus olhos brilham; seu coração palpita; seus pensamentos recorrem à pessoa a todo instante; aquele sorriso genuíno apenas quanto citam o nome do seu amado.
— Terra chamando Roseanne! — Jennie praticamente gritou do outro lado da chamada, tirando Rosé de seus pensamentos em um susto acompanhado de um gritinho.
— Merda, Jennie! Não grita! — A mais nova respondeu no mesmo tom, gritando de volta.
— Então para de gritar de volta! — Respondeu na mesma moeda. Rosé sabia que se ela não parasse ali, Jennie continuaria gritando de volta e ficariam retrucando como em um jogo de pingue-pongue.
Soltou um suspiro antes de falar: — Chega, anão de jardim. — Chaeyoung falou calmamente, porém no final não conseguiu conter a risada quando Jennie começou a xingar ela de todos os nomes possíveis.
Passaram mais bons minutos entre xingamentos e conversas. Porém foram interrompidas quando a mãe de Rosé a chamou para jantarem.
A mulher mais velha bateu na porta quando virou a maçaneta e não teve sucesso em abrir.
— Chaeyoung? Jantar. — Falou com um tom alto para garantir que a garota escutasse.
— Já vou, mãe. — Respondeu no mesmo tom para ter certeza que sua mãe também ouvisse o que dissera.
Com um resmungo, se despediu de Jennie e disse que veria a mesma amanhã na escola. Sempre que desligava as chamadas com a garota de olhos felinos, trazia um pouco dos pesos de seus segredos de volta aos seus ombros, porém um pouco mais relaxada por ter se distraído durante um tempo minimamente suficiente para esquecer-se dos problemas que rondavam sua mente.
Roseanne percebeu que nem tinha tomado banho de tão distraída que ficou na conversa com Jennie, apesar de isso ser um pouco nojento, deu um sorrisinho pois sua amiga conseguiu mais uma vez a ajudar. O melhor de tudo, é que era algo totalmente de graça, Rosé não cobrava a mais velha para ajudá-la, era algo espontâneo. O que indicava ainda mais que era uma amizade leve e que fluía de uma maneira relaxante. Tendo sempre uma rede de apoio por perto.
Ela se levantou, calçando suas pantufas e coçando os olhos que demonstravam sinais de cansaços. Espreguiçou-se e deixou o celular na mesa de cabeceira, conectando o carregador para ter certeza que teria bateria para o dia seguinte. Em passos calmos, chegou à porta do seu quarto e destrancou-a, saindo pela mesma e seguindo pelo corredor para encontrar as escadas. Quando desceu e foi em direção a mesa, engoliu em seco ao ver seu padrasto ali, porém tentou afastar qualquer pensamento que viesse à tona.
Sentou-se na cadeira e começou a servir seu prato em silêncio, colocando pouca comida para não demorar tanto a comer e, consequentemente, passar menos tempo no mesmo ambiente que o homem. A magreza de Roseanne era algo peculiar, justamente por causa desses momentos que aconteciam principalmente no jantar. Ela comia poucas quantidades para passar menos tempo perto do padrasto, uma estratégia que, apesar de funcionar, não fazia nada bem para a garota. O ambiente estava em silêncio, apenas o barulho do tilintar dos talheres e a mastigação dos três sentados à mesa podia ser escutado na sala de jantar.
David repousou os talheres ao lado do prato, cruzando seus braços. Sua língua passeou por seus próprios lábios sem cor enquanto respirava fundo.
— E o Ryan? Como ele está? — perguntou o homem enquanto ajeitava os óculos no rosto. Roseanne queria terminar logo de comer para poder evitar essas situações.
Quando a garota terminou de mastigar, ela engoliu lentamente, sentindo a comida descer rasgando e empurrando os nós que se formavam em sua garganta. Tomou um gole d'água que ajudou a ingerir melhor.
— Eu não... n-não falo com ele. Mas presumo que esteja bem. — Ela fala acenando com a cabeça, tentando assegurar suas palavras e passar segurança.
Apesar do canadense viver atrás dela, se rastejando como um zumbi em busca de um cérebro humano para devorar. Roseanne não dava bola para as investidas, pois começou a ficar cansada de dizer tantas vezes "não" para a mesma pessoa.
— Ryan é um bom garoto, Roseanne. Um ótimo partido. — Afirmou David, em um tom de voz aparentemente simpático, mas ela sabia muito bem que não tinha nada de simpatia.
Ela apenas concordou com a cabeça, tentando não prolongar a conversa. Voltou a dar as últimas garfadas e tomou um bom gole d'água para ajudar a empurrar a comida, que parecia se acumular junto com a angústia em seu esôfago. Apesar de ter uma empregada em casa que cuida da limpeza e organização, Roseanne sempre fora ensinada a não ser relaxada nem mimada. Seu pai sempre lhe ensinou que, mesmo contando com alguém para essas tarefas, isso não justificava abusos ou desrespeito. Seguindo essa lógica, Rosé se levantou e recolheu a própria louça, levando-a até a pia para que pudesse ser posta na máquina de lavar mais tarde. Assim que terminou, voltou para a sala de jantar para agradecer à mãe pela ótima refeição.
Quando o fez, seguiu para o quarto com passos apressados, ansiosa para sair daquele ambiente carregado de negatividade. Cada passo que David dava parecia carregar um rastro viscoso de sombras, como uma mancha que se arrastava por toda a casa, envenenando cada canto por onde passava. Sua presença era pesada, densa, sugava o ar e o deixava rarefeito, difícil de respirar. Era como se sua simples existência fosse um poço sem fundo de negatividade, absorvendo a vida ao redor sem deixar nada em troca. Em sua presença, tudo parecia pálido, sem cor, sem vida; até a luz parecia perder a coragem de brilhar. Quando ele estava por perto, o ar parecia mais grosso, difícil de atravessar. Era como se David trouxesse consigo uma tempestade silenciosa e amarga, uma escuridão que ameaçava devorar qualquer faísca de felicidade ou segurança.
Chegando ao quarto, Rosé fechou a porta e pegou seu pijama, preparando-se para o banho. No cômodo, havia um pequeno closet e um banheiro espaçoso, mas ela evitava o que achava ser extravagante demais. Apesar de todo o dinheiro de seu padrasto, Roseanne preferia simplicidade a luxos vazios, coisas verdadeiras em vez de superficiais. Sabia que David lhe oferecia presentes e facilidades, tentando comprar seu silêncio. Mesmo rejeitando esses gestos, ainda assim, mantinha-se calada. Por quê? Nem ela mesma sabia dizer com precisão. Talvez fosse o medo de não acreditarem nela, de serem contra ela. Talvez fossem as ameaças de David, sempre envolvendo o nome de sua mãe para selar sua quietude e garantir sua reticência.
Ao entrar no banheiro, despiu-se e ficou encarando seu reflexo no espelho. Seus olhos pesados e cansados refletiam uma exaustão que nem ela sabia definir: seria cansaço físico ou mental? Talvez fosse ambos.
Durante o banho, Rosé sentia cada gota gelada descendo pela pele, como se tentasse, desesperadamente, lavar o peso sufocante que carregava no peito. Fechou os olhos, deixando-se apoiar contra a parede fria, permitindo que as lágrimas se misturassem à água que descia. As gotas deslizavam pelo rosto, quase se tornando uma máscara invisível que escondia sua dor, enquanto a água tentava, sem sucesso, limpar as cicatrizes invisíveis que se aprofundavam cada vez mais.
Os soluços engasgados vinham como ondas de desespero, abafados pelo som do chuveiro que, a cada estralo ao se chocar com o chão, pareciam gritar junto com ela. Queria que a água levasse tudo embora – as lembranças, as mágoas, a sensação de ser invadida em cada aspecto de sua vida. Mas o peso continuava ali, agarrado a ela como uma sombra implacável.
Quando deslizou os dedos pelos braços, a pele molhada parecia pesada, quase como se carregasse uma armadura invisível feita de mágoa, algo que nem o banho mais longo poderia remover. O frio da água intensificava a dormência que crescia dentro dela, como se o corpo estivesse desistindo de sentir, num último esforço para se proteger. Mas, por dentro, algo se despedaçava mais a cada segundo, um eco de uma dor que ela mal conseguia compreender, mas que dominava tudo.
Ao terminar seu banho, Roseanne desligou o chuveiro lentamente e pegou a toalha que estava pendurada no suporte. Passando o tecido pelos braços, pescoço, dorso; mesmo após quase um ano desde o último abuso, ainda sentia a sujeira impregnada em si. O tecido áspero contra a pele a fazia prender a respiração por instantes, como se estivesse tentando esfregar não apenas o corpo, mas camadas de memórias que permaneciam gravadas ali, à força, como cicatrizes invisíveis.
Enquanto vestia suas peças íntimas, pegou-se observando seu corpo no espelho mais uma vez; aquela dúvida sobre a exaustão que sentia rondava sua mente novamente. E se algum dia toda essa sensação de remorso e sujeira que impregnavam sua pele e alma simplesmente sumisse? Ela desejava e ansiava por isso – talvez um dia, nem que fosse em um futuro distante.
Vestiu seu pijama, que consistia em uma camiseta branca de algodão e uma calça cinza de tecido grosso. A partir daí, iniciou sua rotina noturna de sempre: deitar-se na cama após um banho gelado – com muito choro envolvido –, vestir-se com roupas confortáveis, envolver-se nos edredons, pegar o celular na mesa de cabeceira e abrir uma rede social qualquer, onde assistia a vídeos de animais fofinhos até que o sono finalmente a consumisse.
Mas naquela noite, algo essencial escapou da sua rotina. Em meio ao cansaço, aos pensamentos e ao peso insuportável que carregava, Roseanne deixou de lado um dos pequenos rituais que a fazia sentir algum controle sobre sua própria vida: trancar a porta do quarto.
O esquecimento poderia ter parecido insignificante para qualquer outra pessoa, mas para Roseanne, aquilo era sua linha tênue de segurança. Era o gesto que a permitia acreditar, ao menos por algumas horas, que estava a salvo, protegida dos olhos e das intenções que rondavam a casa como sombras pesadas e ameaçadoras. Naquela noite, ao se deitar, mergulhou em um sono inquieto, acreditando que os horrores de seus dias estavam trancados do lado de fora.
Mal sabia ela que, ao abrir mão desse hábito, estava deixando a porta escancarada para um pesadelo ainda mais sombrio. O sono que a envolvia era frágil, um resquício de paz entrecortado por calafrios que ela não conseguia entender. Quando despertou, sentiu o peso do arrependimento, um gosto amargo e doloroso que se misturava ao medo crescente; o pavor.
Naquela noite, Roseanne nunca se arrependeu tanto de ter esquecido de trancar a porta do quarto.