Pequenas gotas d'água escorriam lentamente pela janela de seu quarto , durante aquela tarde chuvosa em Coimbra. Seus olhos ardiam , coloridos por um vermelho vívido, enquanto molhavam-se por gotas sorrateiras, essas quentes como se viessem originadas pela mágoa fervente que a garota sentia. Ela sentia-se impune, e muito burra. Atiçou a mão ao fogo por uma pessoa, e se queimou. Afinal, seu coração não estava tão calejado como imaginava, ainda haviam partes intocadas.
Sara se julgou esperta, e acreditou que alguém com privilégios atribuídos a bens materiais não usaria de maneiras eficazes para atingi-la emocionalmente, pois pessoas como estas tiram o que os outros possuem, e ela sentia que não tinha nada valioso, não mais . Mas os milionários também mentem, manipulam e escondem seus sentimentos. Havia uma culpa dentro dela, pois sabia que podia dizer para todos que não sentia atração por Joseph, mas não podia esconder essa verdade cruel de si mesma.
Ela nunca se interessou por romances, seus livros eram de mistério, fantasia , qualquer um que não tivesse o objetivo do amor perfeito inalcançável como tema. Nunca participou de rodinhas de jogos como "verdade ou desafio" com a possibilidade de beijar alguém, nunca sentiu nada por ninguém, além da mais pura afeição de amizade. Não haviam planos em sua vida predeterminados como casar , ter uma casa grande e ter filhos. Era apenas ela, seu pai e Simone. Para sempre, naquele restaurante Beira-mar com seus amigos e funcionários.
Mas então , tudo muda severamente. Como se tudo aquilo que ela imaginou fosse escrito na areia de uma praia, onde a maré avançou e apagou com suas ondas. Sara nunca pensou no amor romântico, nem mesmo os filmes mais clichês poderiam ensinar para ela o que era o verdadeiro amor, e dessa forma não poderia constatar o que o beijo de Joseph havia feito com ela. Poderia ser apenas uma reação cerebral humana, e foi nesta suposição que a brasileira se agarrou.
Se um dia iria se apaixonar por alguém, jamais seria por Joseph Carvalho.
Em meio ao seu choro silencioso, com o corpo repousado sob a cama ela escuta uma vibração, era seu celular sobre a sua penteadeira. Caminhou lentamente até lá com a visão embaçada pelas lágrimas , e leu as notificações que indicavam mensagens de sms, que proviam de um número desconhecido intitulado de " O príncipe ". De súbito Sara tenta decifrar quem se intitularia assim, então lembrou da poesia de Florbela Espanca: "Deus me fez nascer princesa entre plebeus numa torre de orgulho e de desdém".
Este poema foi apresentado a ela por Joseph. Sara então lê as mensagens, a primeira dizia:"Querida colega, sinto muito mas não lhe darei o privilégio de estar certa sobre mim, não sou um cretino".
A segunda era uma continuação: " Sei que deve estar furiosa agora, e eu também odeio frases prontas, mas eu posso explicar porque fui tão rude com você".
Sara sentiu-se profundamente irritada, pensou em desligar o aparelho mas sua curiosidade falou mais alto, então leu a terceira: " Meu pai está nos vigiando, Paola também, venha me encontrar para sua própria segurança, estarei nesta praia localizada no endereço abaixo, amanhã às quatro, por favor vá".
E por fim , ele assinou como : Príncipe de uma torre de Orgulho e Desdém.
Quando pequena, a jovem brasileira sempre teve o orgulho como seu pior defeito. Quando tinha certeza que estava certa, odiava descobrir que haviam fatos verídicos para provar o contrário, fatos que demonstravam o quão falho tinha sido seu julgamento . Se ela não julgasse certo não poderia se proteger, sentia-se indefesa, pois falharia em saber quem está para o bem e quem está para o mal, e Sara odiava correr riscos.
Nos últimos dias, Eleanor e seu pai mantiveram-se juntos. Desde o conselho da brasileira , Alfredo tem se esforçado para construir uma relação mais sólida entre pai e filha. Desta maneira, Sara achou mais plausível não atrapalhar este momento da prima, e cuidar dos seus problemas sozinha. Da mesma forma , Marisa, sua amiga portuguesa passava por problemas à procura de emprego. Não era um momento favorável para pedir conselhos,ela tinha somente a si mesma.
Após a aula na faculdade, esta que lhe pareceu mais entediante de todas que já teve no ano, Sara voltou para grande casa da sua família materna. Ao meio dia, repousou-se sobre sua penteadeira e trouxe para perto sua caneta favorita e seu caderno vermelho. Levantou o seu olhar, e começou a escrever em uma página em branco.
" Eu sinto medo. Sempre. Todos os dias. Eu queria que fosse diferente. O que devo fazer para que a angústia me abandone? Como posso acordar e sentir que está tudo onde deveria estar? Eu não aguento mais ter que ser tão forte, não quero ter que me manter resiliente, eu quero me sentir farta, contente, inteira. Por que tudo aquilo que me faz feliz eu tenho que sangrar para ter? Talvez eu só precise ser corajosa, para vencer a minha própria dor".
Sara recolheu os seus bens pessoais mais importantes e colocou dentro de sua bolsa, saiu pela porta da frente e caminhou até a estação mais próxima de trem. Não demorou muito para sentir um cheiro tão perceptível e familiar no ar, ouvir o som das ondas quebrando tão vitais como as batidas do coração em seu peito. Caminhou alguns metros sentindo a areia macia, o vento frio fazia seus cabelos encaracolados voarem selvagens. Em toda extensão daquele espaço não reconheceu a presença de ninguém além de si mesma. E então perdeu aos poucos a esperança de algum encontro com o português.
Decidiu esperar mais, e os minutos passavam-se agoniantes. Caminhou então para a saída, até que enxergou uma silhueta masculina vindo em sua direção rapidamente, e não demorou para reconhecê-lo. Joseph estava ali, e em questão de segundos encontrava-se materializado em sua frente, com a respiração ofegante e os olhos avermelhados.
— Olá Sara. — Ele tem um brilho em seus olhos e esboça um sorriso fraco.
— Eu sei. Talvez você me odeie, muito mais do que odiava agora, e há razão em pensar assim. Só quero que saiba que nada , nada do que disse foi sincero. Meu pai ao descobrir de tudo, não apenas fez com que eu saísse da faculdade , ele me ameaçou, ele tem os bens da minha mãe e disse que me deserdaria, eu não me importo com coisas materiais mas é da minha mãe , não posso deixar que ele mude o que ela construiu a vida toda, também que faria com que eu parasse de escrever para sempre, e eu não duvido do seu poder. Ele também quis que eu voltasse a namorar com a Paola imediatamente, e eu o obedeci para me proteger, mas então ela estava na jacuzzi com meu primo, nós fizemos um trato para termos um romance de aparências. E neste trato eu devo ser cruel com você, e eu jamais poderia ser, e então eu não tive escolha e aceitei o trato, mas te trouxe aqui para te contar e achar uma forma proteger. — Explica ele com o medo transparente em suas palavras.
— Você aceitou o trato! — Sara reage de imediato. — Não somos amigos , Joseph. E já está muito claro que para se dar bem você faz qualquer coisa. Para quê me trazer aqui, só para dizer o quanto egoísta você é? — Indaga Sara, descontente.
— Eu te trouxe aqui porque eu me importo com você. Me importo com o que você pensa sobre mim. — Joseph caminha alguns passos até Sara. — Eu não ligo para o que o mundo acha de mim, só o que você acha. E sim, já fiz tudo exclusivamente para o meu bem, mas ninguém queria me amar de verdade além de mim mesmo, foi apenas meu modo de sobreviver. — Ele se aproxima.
— E então, porque você se importa com o que eu penso sobre você? — Ela diz modulando a voz como um sussurro.
— Porque eu gosto de você. Eu sinto uma conexão genuína, Sara. E poucas coisas na minha vida foram genuínas. Gostar de você foi uma escolha minha, e isso é um privilégio para um cara que só teve para amar aquilo que o dinheiro designava. Você não tem ambição, seus sonhos são puros e você não sente medo de compartilhar eles com quem ama, você quer transformar a vida de outras pessoas. Eu não conhecia a verdadeira honestidade e generosidade antes de conhecer você. — Ele evidencia tão intensamente, como se guardasse dentro de si a séculos.
— Joseph... — Ela sussurra perdida em seus pensamentos.
— Eu só quero pedir perdão pelo que eu falei. Um homem egoísta como eu, tem muita sorte em te ter em sua vida. Eu não sei o que fazer, eu só queria achar uma maneira de enganar Paola, fazer com que ela pense que conseguiu o que queria e me liberte, Sara. Eu só quero ser livre. — Ele sussurra em sua última frase, sua voz se modula para um campo emocional.
— Sabe, você é inteligente. Por que não deixa tudo para trás? Seu pai, Paola, e a empresa. Por que não vive como quer? Seja quem você quer ser. — Sugere ela.
— Eu sou covarde. E para meu pai sou uma criança malcriada que ele vai castigar até que o obedeça, custe o que custar. Ele não vai medir esforços para tirar de mim tudo que valorizo, apenas para viver do que ele valoriza. Sabe, ás vezes eu penso, no quão o mundo é injusto, seu pai deveria estar aqui hoje, não o meu. — Joseph enxuga uma lágrima fugitiva de um de seus olhos.
— Meu pai está, assim como a sua mãe também. Eles nunca vão nos deixar, cada palavra de amor que meu pai me disse é o que me mantém viva. E, talvez eu precise ferir meu orgulho para dizer que entendo você, eu te entendo Joseph. O mundo te moldou para ser cruel, mas você é um homem puro, você não é divino, imune a toda maldade, mas é bom. E é por isso que eu gosto de você. E isso talvez seja a coisa mais perigosa que já fiz na vida. — Sara diz com os olhos completos por lágrimas.
— Não sei ao certo quanto tempo passamos juntos nos últimos tempos. Mas sinto que te conheço de verdade, família não é só o sangue, eu sinto como se você fizesse parte da minha. Sua ausência tem me causado abstinência, quando não falo com você me sinto perdido, quando não te vejo eu fico imaginando os traços do seu rosto e as coisas toscas que você diz, eu rio sozinho das suas piadas ruins. Você é uma parte permanente na minha vida, eu prefiro ser um príncipe aprisionado em uma torre do que parar de ver você. — Ele diz, sorrindo com os lábios enquanto expõe tristeza nos olhos.
— Sabe , Joseph. Odeio como você é bom com as palavras, como me faz sentir que não posso fazer nada além de gostar de você, como não consigo discordar de nada que você disse. E eu odeio ainda mais, gosto cada vez mais de você, odeio desejar... Beijar você novamente. — Ela o encara em busca de uma resposta.
— Então, não odeie o que seu coração sente. — Joseph se aproxima de Sara lentamente.
Sara o espera chegar, com os olhos brilhantes como o sol daquela tarde. Os dois abraçam-se suavemente, mas se distanciam e Joseph segura um dos cachos de Sara em sua mão, o admira, e em seguida encara o olhar focado de Sara. Ele segura em seu maxilar com as duas mãos carinhosamente, e ela em seus ombros, e então ele uniu seus lábios em um toque singelo e suave, desenvolvendo-se em um beijo. Um beijo que faz com que as ondas não tenham mais som, o sol não queime mais suas peles, e que areia não esteja mais em seus pés, um beijo tão inegavelmente presente que tem o poder de fazê-los ignorar o mundo a sua volta.